ÓBVIO >> Carla Dias
O que fazer das três às seis, quando a noite nem é noite, é meio-termo, avesso de algo que se perdeu dentro de si? O que fazer além de olhar os cômodos como se fossem estacionamentos de memórias emprestadas?
Naquela sala ela sorriu; foi no terraço que ele chorou. As pequenas mãos, de quem ainda não sabe das encrespadas da vida, roçaram a textura da parede e colheram sorrisos de ecoar sem pausa... por horas. Foi naquele tapete que derrubou a bebida; naquela mesa que depositou os papéis, as doçuras foram resgatadas de um debruçar naquela janela.
Na sua casa ecoa a voz, mas não a dele. Os pratos empilhados na pia contam números nos quais não esbarra durante o café da manhã. Os lençóis amarrotados moram num armário do qual, não raro, ele esquece o endereço. Tem certeza que a companhia vem, mas se sente incapaz de reconhecê-la, de aceitá-la, de convidá-la para uma conversa.
Sabe ser só, mas há dias que nem isso faz direito.
Não fosse a música a unir as histórias perdidas nessa casa vestindo pele flácida e embalada por ruínas. Não fosse o barulho dos gritos descartados por um alucinado a lançar suas paixões nas orelhas da madrugada. Não fosse a catarse oferecida por um segundo em que tudo se resume a um aquietar-se de escutar o próprio coração sobreviver ao silêncio sepulcral das faltas. Não fosse, talvez ele parasse de se importar com o que lhe habita e e lhe ajuda a sobreviver no apego ao óbvio.
Talvez viesse um ponto e vírgula mal empregado, de atrapalhar declarações sinceras, preces, confidências de aliviar coração partido, ou, quem sabe, um enveredar de expectativas que nem sabia que cultivava nesse jardim que assumiu ser estéril que é a sua biografia.
E o óbvio é a sua tábua de salvação, sua casa de alvenaria que vento não derruba. Agarra-se a ele, limita-se aos seus desmandos.
É seguro, discreto, ausente.
Comentários
Obrigada, viu? Pela leitura, pelas palavras, pelo afeto. Beijos!
Nádia, obrigada por criar espaço para eles em você.