Paz, passarinho >> Alfonsina Salomão

 

Paz, passarinho.

Paz, passarinho.

Paz, passarinho.

 

Repetia as palavras como quem repete um mantra. 

Buscava se acalmar.

 

Paz, passarinho.

Paz, passarinho.

Passarão, passarinho. 

Eles passarão, eu passarinho. 

Não, não é poesia. É oração. 

Paz, passarinho.

Passa, passarinho.

Não, fica, passarinho. 

Não me deixe sozinha, passarinho.

Lágrimas. 

Não, merda!

Foda-se.

Não, foda-se não, gratidão.

Gratidão, passarinho.

Gratidão. Gratiluz. 

Estou cada dia mais hippie.

Foda-se.

Quer dizer, gratidão.

Gratidão, passarinho.

Paz, passarinho.

Paz, passarinho.

 

E assim ficava. 

Sentada no chão, atrás da cama.

Meia-hora, uma hora, duas horas.

Pernas cruzadas no tapete de yoga,

em frente ao altar improvisado sobre a cômoda vermelha.

 

Fixava a chama da vela.

Fechava os olhos.

Chorava. 

Respirava.

Pensava. 

Ansiava.

Se concentrava. 

Se agitava.

Ponderava. 

E recomeçava.

 

Paz, passarinho.

Paz, passarinho.

Foda-se, passarinho.

Não, gratidão passarinho.

Paz, passarinho.

 

Falava baixinho.

A porta do quarto fechada, para não chamar a atenção do marido que bebia.

Ou acordar os filhos. 

 

Paz, passarinho.

Sentia a solidão.

Se coçava.

Forçava-se a parar de coçar.

E recomeçava.

Uma vez, duas vezes, muitas vezes.

 

Paz, passarinho. 

 

Passarinhos.

Quando enfim subia na cama, pedia para vê-los nos sonhos.

Às vezes funcionava.

Na última vez, estava no topo de uma árvore, rodeada de tucanos.

Era tão bom.

Até que teve medo de cobra.

Olhou pra baixo, alguns tucanos nadavam feito patos.

Não eram elegantes como os que voavam.

Pensou na cobra e jogou-se do galho.

Caiu na água.

Que tolice. Deixar os passarinhos por medo de cobra.

Ainda mais que intuía : naquela árvore, cobra não havia.

 

Mais uma noite chegava. 

Ela recomeçava.

 

Paz, passarinho.

Paz, passarinho.

Foda-se. 

Não, gratidão.

Gratidão. Perdão. Eu te amo. Sinto muito.

Não, está na ordem errada. Como era mesmo?

Eu te amo. Sinto muito. Perdão. Obrigada.

Isso.

Merda, estou pensando muito novamente.

Foda-se.

Não, gratidão.

Foco.

Paz, passarinho.

 

Salve, salvação.

E para quando seria, 

a redenção? 

 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Alfonsina, minha querida! O que foi q vc fez com o meu cérebro? Estou igual aquele meme. Vc explodiu minha percepção! Simplesmente sensacional.
Desculpa, vou-me embora pra Passargada, vou ser amiga do rei!
Jander Minesso disse…
Muito além da adolescência tardia, gostei real do foda-se cortando toda a sensação gratiluz que a narração tenta propor. Essa humanidade que você trouxe foi muito bonita. Gostei real.
Zoraya Cesar disse…
finalmente alguém honesto a relatar uma tentativa de meditação no meio do turbilhão e do caos atrás da porta. Gratiluz é a @#$%% kkkkk
Albir disse…
Um caos a minha concentração, mas só por falta de um tapete de yoga.
Paulo Barguil disse…
Passinho, na terra e no céu... Obrigado pelo espelho. :-)

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