CUIDADO! VOCÊ PODE SER MAIS UM << SORAYA JORDÃO


 

A partida irrevogável daqueles que amamos é, sem dúvida, a maior de todas as tragédias.

Despido de qualquer sentido, entre um milésimo de segundo e outro, desvela-se o abismo do fim do afago, da presença e do lugar de amparo e entrega. Com ou sem sinais prévios, a cortina se fecha. Para fazer jus ao absurdo, o sol cumpre sua inabalável rotina para nos lembrar que a vida segue a despeito dos penhascos da saudade. 

As lembranças bordam a eternidade dos laços, os dias remendam a falta que invade todos os espaços mentais e geográficos. Restam fotos, memórias e a tristeza inconsolável do nunca mais. Esse é o insuperável da morte. Não há contorno, esquina, rotatória. É muro sem saída, cara no cimento. Contudo, a partir de agora, se o ente querido for um animal de estimação e a família tiver boa condição financeira, a perda pode ser ludibriada. Pelo menos, é o que promete uma empresa sul-coreana ao oferecer a clonagem do pet falecido. Com uma pequena mostra, é possível providenciar um exemplar geneticamente idêntico ao original. Contudo, por mais que as características físicas do animal sejam iguais, o comportamento pode não ser o mesmo. Afinal, a interação com o meio em que estamos inseridos impacta na personalidade. Mas isso importa? Qual o problema de colocar feijão no pote de sorvete e acreditar que tem sobremesa para o almoço? 

As pessoas que pagaram pelo serviço dizem estar extremamente satisfeitas com a possibilidade de ter seu bichinho de estimação de volta. Não exatamente ele, mas, ele ainda assim.
Entendo e respeito a dor desesperada de quem perde um ente querido, já perdi minha avó, meu grande amor. Porém, não acho justo com o falecido essa apropriação indébita. Não bastasse morrer, ainda ter que lidar com o fato de que, de uma hora para outra, um impostor se apodera de tudo que foi construído com dedicação, parceria e memórias, porque a dor não pode doer. Nada fácil construir laços afetivos, sintonia e unidade nesses tempos de felicidade ininterrupta.

Se expandirmos aos humanos, o elixir da eternidade, proposto pela empresa sul-coreana, podemos supor que a economia do futuro é o casamento com gêmeo. Morreu Carlos, Caio assume. Caio é mais mal-humorado, sovina e grosseiro, mas e daí? É a carinha do meu falecido amor. 

Antes que a moda pegue, já deixo avisado, a quem possa interessar: na minha partida, ninguém, absolutamente ninguém, geneticamente igual a mim, será eu. Não admito, não concordo e não tolero tamanha falta de importância. Não me descartem na lixeira dos recicláveis. Não sou! 

A vida não acontece como no videogame. Só se vive e se morre uma vez, embora possamos viver e morrer infinitas vezes na mesma vida. A dor de perder é cruel, mas ainda assim, é menos devastadora do que a dor da mentira que se quer crer verdade. 

Vó, nenhum clone será você. Nunca. Nada jamais preencherá essa falta feita de amor vivido.

O sol, esse debochado, segue brilhando no céu. A vida corre pelo vento. E você, vó Irene, mora em todo beija-flor.

Comentários

Alberto Alves disse…
Amiga querida, ler as suas crônicas é um melting pot de emoções, de aventura, de melancolia, de amor e de saudades, por isso precisam ser saboreadas ao lado de uma xicára de café, na primeira hora do dia, curtindo aquele solzinho gostoso que só as manhãs de outono nos proporcionam. Eu as leios ouvindo o tom doce e suave da sua voz ressoando na minha mente, e me sinto grato por ter o privilègio da sua amizade. Beijos. Te amo!
Zoraya Cesar disse…
Dizem que ninguém é insubstituível. Só se for no mundo corporativo. Pq no mundo afetivo somos insubstituíveis sim. O espaço vazio a gente ocupa de amor, saudades, lembranças e poesia, como essa q vc fez da sua Avó, sabendo que ela está em todos os beija-flores.
Que lindoooo. Te amo, amigo.
Paulo Barguil disse…
A importância de aprender que pessoas não são coisas.
Ana Raja disse…
"Só se vive e se morre uma vez, embora possamos viver e morrer infinitas vezes na mesma vida".
Essa é Soraya Jordão escrevendo. Maravilhosa!
Nadia Coldebella disse…
Esse teu texto levanta muitas questões éticas, psicológicas, filosóficas, sociológicas, morais. Mas me pega a espiritual: garantem a mesma alma?
Black mirror da vida real!
Anônimo disse…
Começou com uma linda reflexão sobre a morte e o luto, e de repente entra uma informação absurda! Não sabia que este tipo de serviço existe. Não canso de me espantar com a loucura do ser humano. Se fizerem com pessoas a novela O Clone já nos deu uma ideia de
Como será, isso muitos anos atrás…rs.
Albir disse…
Continuamos tentando enganar a morte como temos feito nos últimos milhares de anos.

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