ANJOS E ANJOS >> Sergio Geia

 


Literalmente — ou literariamente também, por que não? —, não foi fácil me sentar aqui hoje para escrever. Vocês entenderão. 
 
Penso ser traquinagem de anjo, afinal, há anjos e anjos ou... (vontade de usar o título de um livro do Dan Brown). Pode não ser o Gabriel, mas é anjo tipo Paulo Vieira dos céus, bem sacana no bom sentido. 
 
Foram três dias sentados à minha mesa de trabalho tentando escrever. Escritor tem dessas coisas, o texto precisa sair, ainda que ele não esteja inspirado ou nada tenha a dizer. 
 
Olhava as fotos da parede, voltava para a tela do computador, depois desviava o olhar para a sacada, o céu nublado, às vezes azul, às vezes cinza-chumbo, a Serra da Mantiqueira coberta por uma névoa branca, às vezes limpa e banhada de sol, tela do computador de novo, horas nesse processo. Fazia uma retrospectiva de vida, encontros, pessoas, situações, escrevia, apagava, escrevia, apagava. 
 
Até que depois de um tempo assim, apelei, e resolvi pedir. Sim, fervorosamente eu pedi. Aos meus espíritos iluminados favoritos, da estirpe de Caio, Lygia, Braga, Alice, que me dessem inspiração, ou que me dessem assunto, qualquer coisa, um começo, uma frase, uma pedra no caminho, uma flor, uma dor. Acendi incenso (hoje vi uma frase que adorei — Os cheiros são guias para conexão interior), e como num ritual, primeiro absorvi o cheiro de cravo, depois incensei mesa, tela, teclado, pedi ao Superior, ao Pai, a Deus, pedi a qualquer energia que me desse algo, até abobrinhas. 
 
Então ele apareceu com suas asas enormes e me deu um presente; de grego. Começou com uma insignificância na região dos glúteos. Não liguei. A insignificância cresceu, veio um certo incômodo, elevou-se a grau de significância. Examinei: furúnculo? Dor. Dor leve. Dor nível 4. Dor nível hard. E simplesmente, da noite pro dia, eu tinha um estúpido abscesso na bunda que me impedia de fazer uma coisa básica na vida de qualquer ser humano: sentar. 
 
Você ri, pensa que é fácil? Não conseguia almoçar decentemente, não conseguia trabalhar, não conseguia dirigir, nem usar um banheiro dignamente eu conseguia. Pedi a meu filho a minâncora dele, é o que tínhamos para as urgências (homens, escuto alguém dizer?). Passei dias me lambuzando de pomada. Ouvia, de vez em quando, gargalhadas, não só as do meu filho, talvez do anjo, ou de alguns deles. 
 
Mas agora você tem o que escrever, não tem?, uma voz me falava no ouvido. Não era o que você queria? Como sou absurdamente autobiográfico, como minhas crônicas são puro suco de vida (da minha vida), eu tinha realmente por onde começar, e ele sabia disso. 
 
Pois assim se fez, meu anjo. Tá entregue, olha, até já saiu, veja quanta gente me lê neste momento. E mais uma coisa, estou satisfeitíssimo com minhas inspirações, dispenso, portanto, qualquer nova ajudinha, até já tenho histórias novas, os saguis que vi outro dia nas árvores da Santa Teresinha, e que são alimentados diariamente com bananas pelo Joel, ou a minha descoberta de que tenho o Sol em Peixes e a Lua em Libra, amei. 
 
Espero que depois dessa crônica você me dê um alívio, vai, rápido, é caso de urgência. 
 
 
 
P.S.: 1. Ilustração: Pixabay. 2. Depois de médicos, antibióticos, pomadas, e uma crônica, estou bem.

Comentários

Jander Minesso disse…
Depois dessa, dá pra dizer que deus escreve certo por linhas tortas? Bela crônica, apesar de toda a dor.
Mário Baggio disse…
Tirando a dor física, já experimentei esse "nada a escrever, nada por que escrever, nada que faça sentido escrever, nenhuma ideia sobre o que escrever" que você descreveu tão bem em seu texto. A solução que encontrei foi idêntica à sua: voltar aos mestres. Funcionou comigo e funcionou com você. Funciona sempre.
Soraya Jordão disse…
Espero q já esteja recuperado.
Zoraya Cesar disse…
Folgo em saber (para usar uma expressão dos Antigos, q gostamos tanto) q vc melhorou. Da próxima vez pede melhor, mais específico. Lembra daquele ditado 'cuidado com o q pedes; poderás ser atendido' kkkkkk. E q bom q saiu da vibe masculina de passar minâncora até no feijáo com arroz e foi procurar um médico. AAAAAhhhh, tive uma ideia para uma sua próxima cronica: escrever sobre a indignidade humana frente a certas situações - furúnculos, cadeiras do dentista, diarréias em horários impróprios, exames anais anuais para os homens.... Daremos boas risadas.
Albir disse…
Você é mais abençoado que eu. Quando não estou conseguindo escrever, nem com furúnculos os deuses me contemplam!

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