FLORES? >> Zoraya Cesar
"Quem quer flores depois de morto? Ninguém". J. D. Salinger
Eu não sei o que aconteceu, juro que não entendo. Pode ter sido culpa minha,
todo mundo diz que a mulher é sempre culpada, deve ser verdade. Se apanha, é
porque merecia. Se o marido não dá atenção, é porque ela não fez por merecer.
Acho isso muito injusto, mas, c’est la vie, a gente tem de aceitar como ela é.
Por isso, nunca me insurgi contra o que quer que fosse. Meu pai era rude e
severo. Dizia que à mulher bastava fazer até o 2º grau, ou virava
desavergonhada. Minha mãe, criada para ser mucama de marido, concordava. Na
minha casa, mulher não tinha voz nem vez, era obedecer e pronto. E eu obedecia,
nasci cordata e boa.
Vaidades? Nem em sonhos. Nunca pude frequentar academia, usar maquiagem, bijuterias. Regime? Imagina, com tanta gente passando fome! Para meus pais, mulher tinha que ser limpa e asseada, tão somente. Eu não me revoltava, sempre fui mansa e gentil. Por isso, repito: não sei o que aconteceu, juro que não entendo. Vejam vocês, eu era baixinha, mais de 40 quilos acima do peso, cabelos crespos e ressecados, a pele branca e baça. Parecia uma enorme e disforme boneca de cera. Vestia-me como uma velha senhora. Sejamos honestos: eu era feia. Feia, desenxabida e sem graça.
Meus pais sempre acreditaram que eu morreria solteirona. Todo amigo ou conhecido que meu pai levava lá em casa, na esperança de se interessarem por mim, nunca mais davam as caras. Por isso, quando nosso vizinho Romualdo me pediu em casamento, meus pais quase lhe beijaram as mãos. Gerente de uma sapataria famosa, quarentão, dentes grandes, fala mansa, Romualdo era bem apessoado — se você gosta de tipos amulatados, franzinos e que usam base nas unhas. Eu não gosto. Mas não fui criada para gostar ou não gostar. Fui criada para obedecer. (Disseram que era muita sorte, a minha. Sorte. Nunca acreditei em sorte).
Casei-me. Única maneira de me afastar de meus pais sem escandalizá-los. Uma vez casada, estaria por minha conta.
Se você pensa que, saindo de casa, minha vida melhorou, você acredita em Papai Noel. E, se você ainda não sabe, fique sabendo: Papai Noel não existe.
Romualdo nunca primou pelo romantismo durante nosso curto noivado, mas, depois do casamento, virou um ogro. Mal falava comigo e, quando o fazia, era apenas para criticar, cobrar ou grunhir. Sairmos juntos? Nunca. Tratava-me quase como um capacho velho, bom para ser usado na porta dos fundos. Nossa primeira noite – que não sei do que chamar, pois de amor não foi — me traz lembranças desagradáveis e humilhantes. Jamais senti prazer algum; meu marido fazia de mim um mero depósito de esperma.
Um dia, comentei que ele nunca me dera flores. Ele riu. Riu na minha cara e disse, com todas as letras e dentes, que só os mortos e as mulheres bonitas mereciam flores.
Pela primeira vez na minha vida, chorei como uma desgraçada. Eu tentava fazer tudo certo, ser gentil, amorosa, mansa. Passei meses achando que a culpa era minha, sem entender por que Romualdo casara comigo nem porque continuava casado, já que, obviamente, não gostava de mim.
Até que, finalmente, entendi. (A gente demora para perceber a verdade, mas é que essa senhora é por demais cruel, a gente fica adiando o sofrimento).
Romualdo casara comigo por interesse. Para viver às minhas custas. Pois eu ganhava bem — para os padrões de classe média baixa de onde vim, e para minha parca escolaridade. Sempre fui muito esforçada. Ele? Descobri, finalmente, que não era gerente coisa nenhuma, mas um reles vendedor, dos mais medíocres. Explicado, assim, por que nunca sobrava dinheiro para nada, por que vivíamos endividados, por que eu tinha de pagar as despesas do apartamento. Estava sustentando um parasita, que me humilhava, desprezava e explorava.
Quase morri de desgosto. Sempre fui tão cordata e boa, jamais fiz mal a alguém. Talvez a mim, somente. Por isso, juro a vocês que não sei explicar o que aconteceu.
Tudo foi tão de repente.
Uma noite, ao chegar em casa, encontrei-o, bem vestido e bem tratado, fumando recostado à balaustrada da varanda, o corpo meio para fora, como sempre fazia, antes do jantar. E, também como sempre fazia ao me ouvir chegar, gritou “quero meu jantar, sua gorda inútil”. Eu já devia estar acostumada. (A gente não se conhece mesmo, né?)
(Não sei o que aconteceu, juro que não entendo).
Quando dei por mim, estava correndo na direção dele, jogando meu corpo infinitamente mais pesado contra o dele, caindo, ambos, andar abaixo. Eu sobre os ossos quebrados e mortos dele. Dele, dele, dele.
A polícia concluiu por um acidente. Essas varandas de alumínio são frágeis mesmo, e o prédio era velho. Disseram que eu tive muita sorte em escapar viva, só com algumas fraturas. Sorte. Nunca acreditei em sorte. Nem em sorte, nem em acaso, nem em acidentes. Sei muito bem o que fiz naquela noite. Continuo sem entender o que deu em mim, sempre tão cordata e boa, mas sei o que fiz.
No enterro de Romualdo, ainda estava hospitalizada. Não mandei flores. Quem é que quer flores depoisde morto? Ninguém.
("Who wants flowers when you're dead? Nobody." J. D. Salinger, O apanhador no campo de centeio)
Essa história foi publicada em 4 de dezembro (meu aniversário, aliás heheh) 2015, e aproveitei para mudar umas coisinhas aqui e ali. Ela faz parte do projeto Crônica de um Ontem. Prometo q a próxima será inédita! E obrigada pela leitura e comentários.
Comentários
Zoraya, qual era o cardápio daquela noite?