A GENTE JÁ CONHECE ESSA HISTÓRIA >> MÁRIO BAGGIO

 


Como se a gente não soubesse o que ia acontecer, eu e a aleijada...

Sempre o mesmo, nos domingos à tarde: em fila, meninos de um lado, meninas do outro, os mais velhos atrás. Eu ficava no fundo porque já era grande e tinha buço. A aleijada ficava sentada no saguão, alheia a tudo. Não queria manquitolar na frente de gente desconhecida, nem ouvir os risinhos de chacota. Ninguém se importava com ela. “Que acabe logo essa porra toda”, eu pensava. As freiras faziam a revista, dentes e unhas, roupa e sapatos. Quem estivesse com a aparência mais em ordem, com mais jeito de limpo, teria mais chance. Irmã Irene sempre dizia: “Nenhuma família quer levar um porcalhão para casa.” Um pensamento sujo passava pela minha cabeça: “Se eu conseguir sair daqui, vou cagar na cabeça da família que me levar e meter a perna no mundo, ninguém vai me segurar.” Eu já tinha onze anos.

Dava para perceber quando as famílias estavam pra chegar antes mesmo que a cara deles aparecesse no pátio do orfanato: o perfume. O perfume vinha antes, anunciando a visita. Era perfume de gente que tomava banho todo dia, que usava xampu, que escovava os dentes. Gente que tinha cinco refeições por dia. Gente que roncava em cama macia e quente. Era assim esse perfume que chegava antes das pessoas. E demorava pra ir embora. Depois o que sobrava era o cheiro de todo dia: comida enjoada que as freiras faziam, xixi nos lençóis, merda nos banheiros.

As gentes ricas da cidade chegavam e iam logo olhando um por um, pegando, passando a mão, cheirando, virando pra ver de costas, depois de lado, pela frente de novo. Queriam certeza de mercadoria de qualidade. Enganação, não. Se o domingo fosse de sorte para alguém, esse alguém catava os cacarecos que tinha, falava tchau e nunca mais dava as caras por aqui.

Quando as visitas iam embora o dia acabava. Tinha menina que chorava, tinha moleque também, todos os trouxas choravam, contando nos dedos os dias que faltavam para o próximo domingo. Eu não chorava, nem a aleijada, que a gente não é trouxa. A gente já conhece essa história. A gente já conhece a porra dessa história de cor e salteado.


Imagem: Pixabay, sem identificação de autoria

 

 

Comentários

Zoraya Cesar disse…
que porrada, hein? bem escrito pra caramba, doloroso sem ser dramático, realista sem pesos desnecessários, na medida certa. E curto. E dedo no olho. Boooom demais.
Jander Minesso disse…
Seus textos que mais me pegam (como esse aqui) são tipo um acidente de carro horroroso pelo qual a gente cruza na estrada: você sabe que vai embrulhar o estômago, mas olha mesmo assim. Bom demais, Baggio.
Soraya Jordão disse…
Para refletir a semana, o mês , o ano, a vida inteira.
Albir disse…
Os não escolhíveis descobrem isso rápida e dolorosamente.
Anônimo disse…
Ai que dureza… o tom da menina de 11 anos, sua lucidez e revolta, os sentimentos que se manifestam em deboche e palavrões, ficou muito bom!

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