O COLECIONADOR >> JANDER MINESSO
O pai sempre foi de colecionar coisas, começando por recortes de cinema. Ele guardava pastas e mais pastas com resenhas de filmes, entrevistas com atores famosos e cenas dos grandes clássicos de Hollywood. Ele também colecionava um jeito bem peculiar de falar o nome desses atores: gostava do Jâmes Stíuor, mas não muito do Jôn Uâine. E insistia que a Rita Raiuôr era a mulher mais bonita do mundo: “a cena mais sensual da história do cinema é dela. E ela só tira uma luva!”
Ele também colecionava bugigangas, quinquilharias e qualquer coisa que pudesse ser útil para qualquer ser humano a qualquer momento da vida. Era uma coleção vasta, como vocês podem imaginar: porcas, parafusos, escovas de dente usadas “mas que serviam pra um monte de coisa”, arames… tinha de tudo. E para alguém com uma vocação meio MacGyver, fazia sentido. Seu Wlamir sempre foi adepto do “quebrou, conserta. Se não tiver conserto, aí compra outro.”
Uma coisa que ele gostava mesmo de colecionar eram histórias. Histórias e frases. Por exemplo: na infância, o futuro pai vivia pelas ruas da Vila São José, um bairro humilde numa São Caetano do Sul menos esnobe do que a de hoje. Num dia qualquer, um coitado descia a rua quando ele e outros moleques começaram a simular uma briga. Conforme o desavisado se aproximava, um dos moleques pegou um pedaço de pau e partiu para cima do jovem Wlamir. Claro que o adulto sentiu a necessidade moral de apartar a briga e já foi para cima do moleque, gritando um “deixa disso!” e tomando o pedaço de pau das mãos da criança.
Mal sabia ele que a pivetada tinha sujado o pedaço de pau com bosta de propósito.
Como essa, havia muitas outras histórias: a assombração no muro do cemitério; a foto de paletó rosa no Viaduto do Chá; o happy hour num bar bastante progressista na Porto Alegre dos anos 70; a lista é quase infinita. Uma das minhas favoritas é aquela do dia em que um cara saiu pelado da fábrica bem na hora em que o pai, ainda jovem, chegava para o turno dele. A galera que corria atrás do cara na velocidade exata para nunca alcançá-lo, ao ver o Wlamirzão descendo a rua, gritou: “Pega ele, Wlamiu!”
Ele teve que sentar na calçada para rir.
Mas a família também foi testemunha ocular de muitas outras histórias. Podemos afirmar, inclusive, que ele era um analista de riscos tão imprudente quanto convincente. Por exemplo: quando presenteou meu irmão mais velho com uma Caloi 10, o pai fez questão de dar a primeira volta, para ter certeza de que aquele treco era seguro. Nos cinquenta metros dessa pedalada, ele conseguiu dar de cara com um poste e precisou levar dez pontos na testa. A cicatriz nunca sumiu. E que conste nos autos: nenhuma outra pessoa se acidentou usando aquela bicicleta, nunca.
Em outra ocasião, ele quis testar um caiaque que tínhamos alugado durante as férias de verão. Conseguiu fazer o negócio virar numa profundidade não maior do que meio metro. Agora, a ironia: o mesmo cara que cometeu esses dois atentados contra a própria vida era o sujeito que nos dizia, toda vez que saíamos de casa: “Juízo e cuidado. Liberdade tem quem sabe usar.”
A citação acima era um clássico wlamiresco. Porém, a primeira máxima que o pai me ensinou foi: “Garotinho, o tempo não espera.” Ele dizia isso enquanto puxava minha coberta às dez para as seis da manhã, fosse verão ou inverno, para ter certeza de que eu não chegaria atrasado na escola. Ele pensava ter perdido muitas oportunidades na vida por não ter uma boa formação acadêmica. Por isso, fez questão de pós-graduar três filhos. Só assim, teve certeza de que a educação formal não muda muita coisa.
Acho que agora é um momento propício para jogar a estética literária pela janela e assumir que esse texto é só um desabafo. Portanto, vou listar uma série de frases célebres que o senhor Wlamir José Ribeiro usou ao longo de oitenta e cinco anos, quatro meses e três dias para pautar sua existência. A lista completa pode ser conferida na coletânea Wlamiridades, mantida em meu celular e disponível aos interessados mediante mensagem.
“Trabalhar para os outros é bom para os outros.” Tá aí uma frase que sempre entendemos, mas contra a qual ainda não conseguimos lutar. Meus irmãos e eu somos filhos de um cara que desde cedo entendeu que “a vida é dura para quem é mole”: ele perdeu o próprio pai aos cinco; começou a trabalhar aos onze; e conseguiu, com pura insistência e longas horas trabalhadas em uma fábrica de macarrão, ficar os pés na classe média. Nunca nos faltou nada. Pelo contrário: tivemos uma vida confortável e quase luxuosa, apesar do modo de vida espartano do patriarca. A maior extravagância que ele se permitiu em vida foi tirar um Monza zero no consórcio, lá pelo fim da década de 1980. Ficou alguns meses com o carro e, depois, o vendeu para um amigo. Talvez se sentisse culpado de ter um Monza zero no Brasil do Sarney. Talvez desse misto de culpa cristã e zelo pelo próximo tenha vindo nossa dificuldade em não trabalhar para os outros.
Outra frase memorável era “a vida é uma construção da mente” e sua variação “a gente é vítima da própria cabeça.” São conceitos tão geniais que beiram o místico. Ou você entende assim que lê, ou ninguém vai conseguir te explicar a profundidade dessas pérolas.
Durante as brigas com a mãe, o pai costumava chegar perto de nós e dizer: “a gente não se casa porque; a gente se casa apesar.” Faz sentido. Só não sei se ele mesmo entendeu que a gente se casa apesar do outro, mas também apesar dos nossos próprios defeitos. De qualquer maneira, ótima lição.
Uma das frases mais usadas por ele era a seguinte: “só o estúpido não muda de opinião.” Essa frase pode virar hipocrisia muito rápido. Mas, apesar de toda a teimosia, no fundo era assim, mesmo: mesmo que demorasse, o pai mudava de opinião quando percebia que estava cometendo alguma estupidez. E talvez esse seja o motivo de suas frases fazerem tanto sentido: nenhuma delas era dita da boca para fora. Mais do que um contador de causos, ele foi um exemplo. Humano, cheio de defeitos, mas sempre disposto a se perdoar e a seguir em frente. Por isso, quis deixar registrada essa pseudo elegia ao cara mais foda que tive a sorte e o prazer de conviver.
Ver os pais irem embora é tão doloroso quanto inevitável. Os meus foram uma dupla rara e fizeram parecer fácil o ato heroico de criar três filhos. Por isso, terminarei esse texto fazendo inveja. Porque o leitor pode se iludir o quanto quiser, mas o fato é que meus irmãos e eu tivemos o melhor pai e a melhor mãe do mundo. E se são tantas lágrimas que mal consigo enxergar a tela para terminar o texto, elas rolam pelo simples motivo de que “a saudade é o presente de passadas alegrias.” Juízo e cuidado, garoto.
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Imagem: Pixabay
Comentários
Texto lindo!
❤️
Começando com a saudação do “ô, garoto” ou do “oi, menina”, passando pelas frases filosóficas e histórias de vida. Místico, como você disse… até folclórico, mas sempre verdadeiro.
Olhando pra trás, ainda que quiséssemos mais, seria egoísmo esticar sua presença… Mas foi sempre “o cara” a cada segundo… em cada ensinamento… até o último bilhete.
Valeu, garotinho!
Pensei aqui com meus botões que seu pai era um escritor se caneta, cujo talento foi transferido aos dedos do filho!
Pura verdade, não acha?
Emocionante, Jander!