PARAÍSO NAS AMÉRICAS >> Albir José Inácio da Silva
No início até comemorou a
tornozeleira, a prestação de serviços e a restrição de horários e locais. Afinal,
poderia ser bem pior não fosse a solidariedade de um fardado do bem que indicou
uma saída desguarnecida do Palácio.
Estaria agora cumprindo 17 anos
de cadeia como outros patriotas. Mas foi preso no acampamento, e as câmeras não
conseguiram identificá-lo porque cobriu o rosto durante toda a missão na Praça
dos Três Poderes.
Passada a euforia com a própria esperteza,
baixou a depressão pelo estigma da caneleira que o impedia de andar de bermuda
e jogar futebol. Além disso era obrigado a frequentar o humilhante curso sobre
democracia, cidadania e golpe de Estado - coisa dos comunistas que tomaram o
poder, doutrinação a que nunca se renderia.
Perdeu o emprego por causa da
prisão inicial e não conseguiu mais arranjar trabalho. Os amigos se afastaram,
falsos amigos, porque os verdadeiros estavam na Papuda, na Colmeia ou com as
mesmas dificuldades que ele. Até os biscates desapareceram depois de uma gripe
que durou semanas. E o diabo da mulher ainda disse “bem-feito” porque ele não
tomou a vacina da gripe. O que podia fazer? Não acredita em vacinas!
Essa mesma mulher, que o tinha
avisado para não acampar na porta do quartel, segurava as pontas com seu
salário, mas aproveitava para humilhar, chamando-o de imprestável, fanático e
maluco. Até de chifre ele andava desconfiado, porque nunca a tinha visto tão
emperiquitada. E ela fazia plantão até tarde da noite, jogando na cara dele que
precisava trabalhar.
Na semana passada, agitava-se num
pesadelo recorrente desde que ficou na Papuda: comida ruim, falta de higiene, guardas
sádicos, lugar para desclassificados e não para patriotas. Num movimento brusco
de indignação sonâmbula, acertou a canela da mulher com a tornozeleira. Foi o
bastante para ser expulso da cama e ouvir mais meia dúzia de desaforos. Ficou
no sofá, olhando o teto e pensando no que tinha se transformado a sua vida.
Não era mais nem uma sombra do
que foi há alguns anos, quando se descobriu e se revelou ao mundo. Tinha ficado
surpreso ao perceber, nos embates das redes e na porta dos quartéis, que entendia
tanto de política, de vacinas e outras coisas que nem sabe o nome! O zap só
confirmava suas verdades. Estava pronto para desafiar qualquer debatedor
comunista. Passava o dia em discursos nos ônibus, na fila do banco, no
supermercado ou nas redes sociais, sempre usando a camisa da CBF.
Também não sabia que era tão
religioso. Tinha se afastado da Igreja romana depois que arranjaram um Papa
comunista. Mas descobriu a nova fé, que não passava a mão na cabeça de
pecadores e apontava o inferno aos que não fossem cidadãos de bem. Sentia-se
numa guerra santa, um cruzado para estabelecer na terra o reino de Deus.
Estava nessas divagações, olhando
o teto, sem forças até para o celular, que insistia na campainha das
notificações. As mensagens não paravam. Quando finalmente olhou, não pode
conter as lágrimas.
Apesar das falsas acusações e da
campanha internacional da imprensa comunista, Ele ganhou! O ungido estava de
volta à Casa Branca com seus cabelos de ouro! Os céus estavam em festa! Plot
twist na história do planeta Terra! Chupa, comunistas!
(Continua em 25/11/2024)
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