ARMAS, ATROPELOS E BRASÕES >> Albir José Inácio da Silva
Quando Dina ouviu os primeiros
acordes do hino nacional, quis descer correndo os nove andares, mas conteve-se
esperando o elevador e conferindo no espelho o patriotismo da faixa na cabeça, da
camisa da CBF e do xale de bandeira brasileira.
Já estava conformada em assistir
da janela como das outras vezes, agitando a bandeira, àquele auto de fé e civismo.
Não tinha coragem de deixar sozinho o seu cachorro Duque, querido e manco, que
a maledicência da vizinhança dizia ser retardado. Mas convocou a diarista para
um serviço extra naquele domingo.
“Você vai ficar sentada,
Lurdinha, só cuidando do Duque! Não precisa fazer nada!”
O Duque recebeu esse nome para
encarnar as duas paixões de Leopoldina: a glória de Caxias e a dignidade da
nobreza.
Ao exército de Caxias devia tudo
que era e tudo que tinha. Seu pai chegou rapidamente a coronel nos tempos da
gloriosa revolução de 64, tão caluniada pelos vermelhos. Até hoje ouve boatos
sobre a atuação do Coronel Diamante nos interrogatórios. Esse era o
agradecimento pelo rigor com que tratou os inimigos da pátria!
Mas o pai deixou-lhe ainda outro motivo para
venerá-lo: pensão vitalícia enquanto permanecesse solteira. E quem precisa de
casamento com uma pensão dessa? Bastava-lhe o Duque.
Quanto à nobreza, Dina – como era
conhecida - se julgava descendente. Mesmo que o galho genealógico não se tenha
confirmado na direção da Arquiduquesa da Áustria, a Imperatriz Dona Maria
Leopoldina, “Coincidências não existem, este nome não é à toa”, dizia.
Na Avenida Atlântica, milhares de
pessoas vibravam ao som do hino nacional. “Brasil um sonho intenso, um raio
vívido...”. Dina acompanhou os intervencionistas, estendendo o braço direito
com a mão espalmada para baixo na direção do general que, nesse momento,
prestava continência de pé sobre o jipe. Talvez não fosse exatamente um
general, mas era com certeza alguém imbuído de generalismo.
No caminhão que vinha logo atrás
dos militares, outro ídolo: o Príncipe herdeiro - um legítimo Orléans e
Bragança. Ele acenava e jogava beijos. Dina ainda perguntou se não seria quebra
de protocolo, atirar beijos durante o hino. “Mas o Príncipe é o Príncipe”,
acalmou-se.
Não podia mesmo perder aquele
momento histórico por causa de sua neurose com o Duque!
Enquanto isso, Lurdinha colocou
na máquina uma cápsula de capuccino. Depois sentou-se na cadeira-do-papai com a
xícara na mão e os olhos fechados. Essas palhaçadas de passeata costumavam
demorar e ela teria algumas horas de paz até a velha maluca voltar.
Mas o café pediu cigarro e ela se
levantou. Nem pensar em fumar ali dentro, que a patroa era neurótica com fumaça
e reclamava do cheiro até no seu cabelo. Saiu pela porta da cozinha, empurrando
o Duque com a perna. Fechou a porta atrás de si e acendeu o cigarro, enchendo
os pulmões de felicidade.
Barulho de alguma coisa caindo do
lado de dentro, Lurdinha abre uma fresta, mas não consegue ver o cão. Abre mais
e enfia a cabeça. Ele surge de repente, embarafusta-se entre as pernas dela, que
recua. Bem a tempo de ver uma mancha preta se precipitar pela escada de
serviço.
Lurdinha engasga com a fumaça enquanto
desce os degraus tentando alcançá-lo. “Maldito cão do inferno!”, blasfema.
Cinco degraus à sua frente, o cachorro tropeça, rola dois ou três degraus, se
apruma de novo e torna a cair e torna a rolar. Agora já são oito degraus de
diferença. Ganha terreno com essas quedas e rolamentos, enquanto ela tenta
descer de dois em dois degraus. Arqueja, mas está confiante: do portão ele não
passa!
Mas o porteiro Zeca segura o
portão com o corpo, enquanto joga charme pra cima da piriguete que trabalha no
401. Ele olha assustado e sem entender os gritos da Lurdinha. Enquanto isso o
Duque passa entre suas pernas e ganha a calçada.
No calçadão da Atlântica, Dina
nem pisca, coração batucando ao ritmo do hino. Agora o trecho que ela mais
gosta: “Mas se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge
à luta, nem teme quem te adora a própria morte, terra adorada...”
Mas, mãe é mãe. Primeiro aquela
sensação ruim de que algo está acontecendo. Depois ela reconhece a voz do filho
entre dezenas de outras. O latido rouco e cansado do Duque foi ouvido antes que
ela pudesse vê-lo.
Saindo por entre centenas de
pernas, Duque desce o meio-fio, mancando na direção de Dina parada do outro
lado do asfalto.
- Para! Para! – grita ela com
todas as suas forças. Mas o general não ouve, o jipe não para. O Duque corre,
tropeça e cai sob a roda.
Dina cai de joelhos.
Duque ainda se mexe. O caminhão
do Príncipe se aproxima. Sem saber de onde retira forças, Dina grita de novo.
- Para! Pelo amor de Deus, para!
A nobreza continua avançando como
se a vida de uma súdita não estivesse no asfalto. Lá sobre os carros estão seus
heróis, supremos e majestosos, quase deuses, sem ao menos se dar conta de sua
desgraça. Dina desmaia.
Ao acordar na barraca de socorro
médico, ela tem de ser contida em seus delírios. “Para meu General! Para meu Príncipe!”,
balbucia, antes que a paz diazepínica se espalhe pelas suas veias.
No domingo seguinte, a passeata é
outra. Sem brasões, sem fardas e sem clarins. Mas lá está Dina de blusa
vermelha, na comissão de frente, gritando palavras de ordem: “DITADURA NUNCA
MAIS! SEM ANISTIA PARA ASSASSINOS E TORTURADORES!”, enquanto soca o ar com o
punho esquerdo fechado acima da cabeça.
OBS: Este texto integra o Projeto Crônica de um Ontem e foi publicado originalmente em 19/11/2018.
Comentários
Brincadeiras à parte, que crônica premonitória, hein?