NOSTALGIA DA INTELIGÊNCIA >> André Ferrer

Ao lado do cinema, inaugurou-se uma locadora de filmes. Havia Betamax e VHS, o que originou duas seitas fundamentalistas. Corria, então, a década de 1980.

“E.T., O Extraterrestre” (1982), “Os Goonies” (1985) e “A hora do espanto” (1985), entre outros, ainda chegaram a tempo de serem reverenciados na tela grande. O Cine Terracota periclitava. Seus funcionários, todos idosos, pareciam carregar a decrepitude das paredes, cortinas e assoalhos no próprio rosto. Meguinha, o cartazista, já era um doente hepático naquela época, mas ainda reproduzia imagens incríveis em tamanho grande. Seus cartazes e letreiros ainda faziam com que os transeuntes parassem naquela altura da avenida.

Nas imagens imensas, pintadas a mão, que indicavam as atrações atuais e vindouras, as pessoas sempre reconheciam o rosto de alguma personalidade local. Políticos, autoridades e populares apareciam como vilões ou mocinhos, evidentemente, segundo o gosto e a decisão do artista. Meguinha, no entanto, fazia charme. Nunca deixava claro. Sua crônica social ficava mais forte com aqueles ares misteriosos.

IMAGEM: Freepik

Na Semana Santa, o rosto de algum desafeto de Meguinha surgia, em plena fachada do cinema, transplantado no corpo de Judas. Uma vez, o povo achou semelhança entre um faraó tirano e Manuel Capistrano Bezerra, oficial de justiça. Meguinha negou e com uma veemência jamais vista. Graças ao pintor, os cartazes de "Ben-Hur" (1959), "O Manto Sagrado" (1953) e "O Redentor" (1958), que faziam parte do acervo do Cine Terracota, bem como "O pássaro azul" (1940), "Quo Vadis" (1951), etc., ganhavam, a cada ano, versões atualizadas.

O velho cinema resistiu até a década de 1990 quando surgiu o DVD e mesmo a vídeo-locadora já perdia a clientela. Transformado em igreja, o Cine Terracota sofreu mutilações arquitetônicas. Um dos últimos representantes do estilo “art déco” na região, infelizmente, perdeu-se embaixo de marretadas. De um dia para outro, os frisos da marquise que contrastavam com as colunas em “V”, arredondadas e revestidas de pastilhas, deram lugar a uma fachada de vidro temperado, alumínio e tinta branca.

Agora, na Semana Santa, sem os frisos e sem o mítico sarcasmo de Meguinha, tudo ficou muito triste. Uma faixa propagandeia um missionário vindo de longe, exímio curador, palestrante ungido pelo verdadeiro Deus, um santo homem. Na entrada, logo abaixo dos dizeres, a imagem do milagreiro, seu sorriso boçal, pretensioso e canastrão. Aos espíritos mais perspicazes, ele transmite uma imensa nostalgia da inteligência.

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Esta crônica faz parte do projeto "Crônica de um ontem" e foi publicada originalmente em 26/09/2016.

 

Comentários

Jander Minesso disse…
Entretenimento por entretenimento, fico com o cinema. Mas entendo quem prefere a performance ao vivo.
Soraya Jordão disse…
que saudade da locadora do meu bairro.
Zoraya Cesar disse…
Como costumo dizer, o q é bom é eterno. Publicada ontem, mas atual e bem escrita hoje. Não tem erro. André Ferrer acertando na mosca de novo.
Albir disse…
Que beleza de crônica, André!
Não lembrava dela.

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