ALBERICO >> Sergio Geia
Lembro que a Regina ligou. Ela queria saber de Alberico, um velho amigo. Contou-me sobre o capítulo 3 de que tinha gostado, usaria alguns trechos num evento acadêmico.
Depois que lancei o Confidências, em 2014, nunca mais voltei ao livro. Não foi insegurança. Antes de lançá-lo, contratei uma profissional do Rio para a leitura crítica. Você não está me contratando para receber elogios, está?, ela perguntou. Porque se estiver, esqueça. Eu não vou dourar a pílula. Vou dizer o que acho, com a maior franqueza possível. Não queria aplausos, queria uma parceira. Ela gostou. Apontava defeitos, mas, no geral, gostou.
Ainda assim, nesses anos todos, o livro ficou intocável na estante. Acho que todo escritor tem disso, Clarice, por exemplo. Não resisti, porém, ao capítulo 3. Na mesma noite em que falei com a Regina peguei o livro. Vou citar alguns trechos:
O que eu quero dizer é que algumas ideias começam a me incomodar. Chego à conclusão, por exemplo, que minha vida só a mim pertence e a mais ninguém. (...) Somos moldados pelo ambiente à nossa volta e herdamos os costumes de nossos ancestrais. Romper essas amarras é uma atividade complexa e de custo muito alto. Poucas, pouquíssimas pessoas têm a coragem de viver a própria vida. (...) Viver a própria vida significa autonomia. Tomar decisões com base em minha razão íntima.
No conforto da sala de casa, bebendo um vinho, Alberico conta sua história para um amigo, realçando o momento em que rompeu as cordas que o aprisionavam a uma biografia que não era a sua. É claro que viver a própria vida não acontece sem desafios, lutas, decepções, às vezes, tragédias:
Minhas primeiras vítimas foram meus pais, tadinhos, que morreram de tristeza. Não é força de expressão, eles morreram mesmo. E de tristeza. Uma profunda tristeza. A doença não foi a causa. A doença apenas encontra a porta aberta e entra. Quem abre a porta é a nossa cabeça, nossas fraquezas, nossas limitações, a incapacidade que temos de enfrentar nossas mazelas, com profunda repercussão psicossomática. A doença entra, se instala, e aniquila nosso pobre corpo.
Quando escrevi o romance e, principalmente, quando trabalhei a personalidade do narrador, Alberico, estava lançado num momento de grandes mudanças pessoais, impactado por algo que havia lido e que mexia comigo todos os dias:
Fui o que não sou.
Tão poucas palavras, tão profundo. Não quero chegar ao fim da jornada percebendo que eu fui quem não era, pensei. E como um insistente sino de igreja, esse pensamento ficou a reverberar em mim por muito tempo.
Voltar ao capítulo 3 com toda a sua potência, voltar a Alberico, me levou para um lugar que eu havia esquecido. Foi bom.
Ilustração: Pixabay
Comentários
Ótima crônica!