IRRELEVÂNCIA >> Carla Dias
Enganar-se vem de berço, mas lamenta não ter endereço para devolução ou central de atendimento 0800 capaz de informar o necessário para não sentir falta da sua origem indefinida.
Quais documentos apresentar?
Quantas parcelas de burocracia?
Pode ser negociado?
Não.
Apesar de preferir não questionar a vida — organizadora das quedas e da miséria que o açoita—, às vezes planeja, em diálogo interno contínuo, fugir do mundo. Acredita que, aos poucos, insistindo na meditação necessária, sua mente será capaz de visitar lugares onde seu corpo jamais será visto: debaixo de cachoeira, para evitar afogamento dramático. Circo, pois está farto de correr dos palhaços, por conta de medo plantado na infância, e da redecoração das mágicas. Salas de espera para qualquer fim aceleram sua respiração, principalmente diante da possibilidade de visitar centros cirúrgicos. Reunião de dez anos para celebrar qualquer ocasião; despreza, com cautela, a contabilidade de décadas.
Pensa nos observadores da história do mundo, e no poder desbotado deles de somente assistir a um ciclo interminável de criação e destruição, o universo sobrevivendo à base de mirrado respeito, largado no terreno baldio do egoísmo: é meu, é meu, nunca será seu. Tem horror à ideia de ser escolhido para observar começos expelidos por fins.
Sabe como é terminar antes de acontecer. Sua desimportância sobrevive da sobra, mas às vezes tem sorte, e ela foi desprezada, apesar de seu valor.
Não dá valor à dissonância. Reverencia a cadência da constância.
E se lhe pedem passagem, ele permite, mesmo quando é certo que os deixarão para trás.
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