O ESTABELECIMENTO >> Carla Dias
Aprendeu o ofício com o primo, que acompanhou seu aprendizado. Dedicou-se a aperfeiçoá-lo, encarando anos de pesquisas e autoanálise. Aprendeu, por exemplo, que havia nele energia suficiente para lidar com as situações mais escabrosas, até ser possível resolver o problema do outro, ou ao menos ajudá-lo a encontrar a solução.
O primo lhe perdoaria a incapacidade, ele sabe disso. Sempre foi mais gentil consigo do que ele. Vive a falar sobre a habilidade de compreender o que está fora do alcance e aceitar essa condição. Mas ele escolheu ir além, porque desejava ser um dos melhores no que fazia.
Talvez ignorar o conselho do primo tenha colaborado com o que sente agora. Pensa não haver outro jeito, está quase apto a reconhecer sua incapacidade de atender a necessidade do outro. A nostalgia o toma: o sorriso. Viciou-se no sorriso deles, aquele que minava de seus lábios logo depois de serem agraciados com seus serviços.
Parado na porta, olhos encarando os pés, como se eles tivessem vontade própria e lhe negassem o próximo passo. Seu corpo implora para que volte para a cama, ele luta contra, usando aquele fio de eletricidade que agita seus sentidos quando está prestes a se render.
Não consegue ir muito longe. Alguns passos, então se senta na escada e observa o movimento da rua. As pessoas levam suas vidas como se nada acontecesse, ao que ele é grato, pois não se trata de indiferença, ao menos não para a maioria, mas de sobrevivência. Se também elas tivessem de sentir o que ele sente, o mundo estaria mais perto do fim. Não que esteja muito longe dele, mas se todos se rendessem ao que pesa em seu coração, teriam de fechar o estabelecimento. Não haveria clientes.
Sente-se vazio de quem estava habituado a ser. Quando olha para as pessoas, não enxerga mais possibilidades, espaço para atuar e colaborar com elas. O primo vem insistindo para que ele reconheça a própria impotência, assim terá chance de sobreviver a si mesmo, porque “você não é Deus!”
Reconhece a agonia: ter de sobreviver em vez de viver; seguir incapaz de dizer às pessoas o que elas precisam escutar, já que ele mesmo enterrou a esperança nos acontecimentos. O mundo se contorceu e ele não consegue mais se ajustar a sua forma, compreender as suas camadas. Todo seu conhecimento se mostrou vão diante da realidade.
Uma voz aguda o arranca da divagação.
- O senhor deixou cair!
Recolhe a maleta esparramada no chão e a encaixa nas mãos dele. O sorriso do menino tem frescor pouco visto ultimamente. Não consegue sorrir de volta, mas acena, com a cabeça, um agradecimento murcho.
- Até daqui a pouco, padre! A gente se vê na missa!
O menino sai correndo, como se tudo estivesse em ordem. O primo exigiu que ele parasse de assistir aos telejornais, que se dedicasse aos caminhos de Deus, mas ele não consegue evitar. E assistindo ao mundo se desfazendo, alimenta a certeza da sua insignificância.
Hora de fechar o estabelecimento. Que Deus cuide de seus clientes.
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Imagem © Obra de Wassily Kandinsky
Comentários
texto forte e lindo ao mesmo tempo, se é que isso é possível.
Mais um Carla Dias em excelência.
Texto lindão e que ecoou mais ainda aqui dentro porque botaste um belo de um Wassily pea ilustrar.
Sem surpresa, mas encantado!