POR QUÊ? >> SORAYA JORDÃO
Milena acordou nauseada. Há dias se sente indisposta e indigesta. Sem dor, sono, fome, sede, vontade, nada. Só enjôo.
Como podia ser? Sua alimentação era balanceada, fazia atividade física, quatro vezes por semana, consulta médica semestral e vermífugo anualmente. Nauseada de quê?
Levantou-se da cama, arrastou-se para o banheiro, vomitou, lavou a boca, prendeu o cabelo, foi trabalhar.
No escritório, fez planilhas, mandou e-mails, pagou fornecedores, teve tontura, lembrou do antigo sonho de ser cantora, suou frio. Fez café, bateu ponto.
No carro, a caminho do mercado, ligou para empregada, combinou o jantar. Fechou o sinal. Abriu a porta do carro, vomitou. Fechou a porta. Abriu o sinal.
Depois das compras era hora da academia. Fez sua série completa, sorriu para os conhecidos, ouviu música, lembrou das aulas de canto, que parou de fazer por falta de tempo, ingeriu seu pós-treino. Seguiu em frente.
Chegou em casa, abraçou o marido, beijou a filha, tomou seu banho, sentou-se para jantar. A funcionária notou sua palidez, Milena desconversou. Comeu pouco.
Colocou sua filha para dormir.
Em troca de descanso, aceitou negociar com o marido. Ofereceu palavras gastas e gemidos ensaiados. Quando ele virou de lado para roncar, Milena iniciou sua oração pessoal: ticou item por item todos os pré-requisitos de uma vida plena. Sucesso profissional, casamento, filhos, fartura na mesa, saúde física e mental.
Adormeceu. Sonhou que soltava a voz num palco baixo, na areia da Praia da Bica, paraíso poluído da adolescência. Estava de biquini, sal no corpo e nos cabelos, cercada de amigos sem grandes sonhos. Sorria. Ria. Gargalhava. Dançava, cantava, chorava.
Acordou nauseada, seguiu em frente.
Comentários
Conta de todos os sacrifícios que fizemos em nome de uma vida que finalmente não nos convém… eu também gostei muito do ritmo e do desfecho com o sonho!
Difícil é explicar para os outros e para si mesmo que está tudo bem, mas não está.