Joana >> Alfonsina Salomão
- Você vai terminar sozinha, vivendo num apartamento de 30 m2, sem cachorro nem gato pra te fazer companhia, porque você é alérgica.
Ela achou graça. Verdade que era alérgica e caso não encontrasse outro amor depois do divórcio sequer poderia se consolar com a presença de um bichinho. Ainda não tinha pensado nisso. Joana apreciava o humor ácido do marido, à la Woody Allen. No meio da briga riram juntos. Ele sempre conseguia trazer um pouco de leveza para as disputas com seus comentários inteligentes, pensou, sentindo uma pontada de amor pelo companheiro. Falaram da organização do dia com as crianças, retomaram suas atividades rotineiras e a coisa ficou por isso mesmo.
Mais tarde, relatando as palavras do marido à um amigo, pronta para dar risadas, Joana se surpreendeu ao ver a expressão que se formou em seu semblante. Uma reação de surpresa nada divertida, seguida de um espantado: “- Ele falou isso?”. Joana se deu conta então de que as palavras do marido eram mais violentas do quê engraçadas.
Se lembrou de uma amiga que vira uns meses atrás. Ela estava se separando e, para explicar as razoes por trás da decisão de deixar o homem com quem estava desde a época da faculdade, tinha dois filhos e dizia ainda amar, evocou o conceito de “microviolências” : comportamentos sutis, enraizados nas sociedades patriarcais, que agem no cotidiano subjugando as mulheres, mantendo-as num lugar de inferioridade. Isto remeteu Joana à noção de poder capilar de Foucault, um poder que está imbricado nas relações sociais. Joana gostou da palavra “capilar” associada a “poder” desde a primeira vez que ouviu o conceito. “Capilar” a fazia imaginar uma lava incandescente percorrendo as ruas, dobrando as esquinas e descendo as escadas, preenchendo os espaços vazios e moldando-se ao formato dos caminhos por onde passava, num interminável fluir que a permitia alcançar tudo o que de novo tentasse surgir.
Pensou num filme que assistira há alguns no cinema, uma animação sobre o Afeganistão talibã, As Andorinhas de Kabul. Os desenhos em preto e branco tornavam a violência da história suportável, quase poética. O que mais a havia marcado no filme fora o personagem de um homem esclarecido e apaixonado que, apesar de toda sua compreensão e cumplicidade com a esposa, num dado momento sucumbia à loucura ambiente, pegava uma pedra e a lançava numa mulher que estava sendo castigada em praça publica. Joana sofreu ao ver esta cena, que a fez compreender que as sociedades machistas são terríveis também para os homens, coagidos a se conformar a papéis que inviabilizam qualquer forma de companheirismo. Todo mundo saía perdendo.
O marido se considerava a pessoa menos machista do mundo. Verdade que comparado a outros ele era quase progressista. Mas se ela olhasse para os interstícios da relação, as marcas da microviolência e do micromachismo se revelavam, como os pelinhos nojentos de uma pata de inseto colocada nas lentes de um microscópio. Como os ácaros invisíveis que a faziam coçar e a impediriam de contar com o conforto de um pet em caso de separação. O pior era que o marido estava tão embebido nesta maneira capilar de exercer seu poder de macho que simplesmente não se dava conta da violência que exercia. Ele estava genuinamente perplexo, incapaz de compreender a decisão de Joana de desfazer o casal e abandonar o modelo burguês de família que haviam construído, jogando para o alto papai, mamãe e filhinhos felizes para sempre numa propaganda de margarina, sorridentes nas fotos do Instagram. Ele disse que se preocupava com ela, que terminaria sozinha e infeliz.
“Eles acham que nós, aos quarenta e cinco anos, com filhos e fedendo a menopausa, não vamos conseguir nada melhor do que eles”, replicou outra amiga ao telefone ao ouvir o relato de Joana. Ela tinha deixado as crianças na escola e sentado num café para chorar. A amiga em questão, já divorciada e mãe de três filhos, contou que estava cogitando se separar do companheiro atual. Joana admirou sua ousadia. O importante era mesmo estar bem consigo, pensou, e não atentar à própria integridade por medo da solidão. Veio-lhe à mente uma música de Ney: “Antes mal acompanhada do que só/ Você precisa de um homem pra chamar de seu/ Mesmo que este homem seja eu”. Será? Não... seu choro era ela transbordando, não cabia mais nas antigas formas de se relacionar. Melhor tomar coragem e virar o disco, trocar a músicas da playlist e cantar Arnaldo: “Só nós dois, meu amor/ Não cabemos em mim ou em você/ Como toda gente tem que não ter cabimento/ Para crescer”.
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