RASGANTE DENTRO DE MIM >> Ana Raja


O silêncio era bonito ecoando de dentro daquela casa. A janela refletia uma escuridez de encantamento. A cor escolhida das paredes de fora da sua morada era azul piscina.  Não combinava com o buraco azulejado encardido e vazio de tudo.

O vulto que passava altivo pela janela tinha os cabelos na altura dos ombros. Parecia não se interessar pela paisagem lá do avesso, apenas pelas folhas secas grudadas no corpo. Nunca descobri o gosto dela por sabor que fosse. Será que ela comia? E se não, como conseguia viver? Durante os anos em que sobrevivi naquela rua, o seu rastro eu não enxerguei. O tamanho do par de chinelos - usado pelos vizinhos, para os encontros em finais de tardes frescas - não ficou marcado no cimento morno.

Às vezes, o vento limpava a varanda repleta de folhagens, revelando o piso de cerâmica preservado. Em tempo algum me chegou o perfume de doce, café. Sons de risadas ou choros. Rádio, televisão.

Eu desejei...muito. 

Arrombar aquela porta e me jogar no que restava daquela história. Me misturar aos cheiros não sentidos, me calar no silêncio rasgante dentro de mim, puxar as folhas do seu corpo e colar no meu caderno de fabulação. Minha mãe amarrou as minhas pernas. Disse: aquela, a do outro lado da rua, é acumuladora de sentimentos excêntricos. Desde esse dia, passei a imaginar a cara dos sentimentos excêntricos. Perdi a vontade de seguir com o plano de invasão.

Mas o mistério continuou, então, passou a morar dentro de mim, indesvendável. Acesso o seu lado sombrio misturado com o meu e escrevo diante do mundo sobre as excentricidades dos sentimentos.

Ao amarrar as minhas pernas: da filha, a mãe libertou a imaginação.


Imagem © Frank Winkler por Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Alguém já me disse que a primeira frase é fundamental. E você já me ganhou nela, Ana. Mas imaginar uma pessoa guardando sentimentos excêntricos em potinhos organizados e rotulados foi maravilhoso. Você escreve muito bem. Dá um afago no peito da gente.
Soraya Jordão disse…
Querida, Ana, admiro imensamente o jeito delicado e potente com que você tece a história. Lindo!
Zoraya Cesar disse…
" A janela refletia uma escuridez de encantamento." Como disse o Jander, conquistou logo de cara. E a frase final foi de ouro. Esse lance dos sentimentos excêntricos guardados em potinhos podia muito bem ser desenvolvido em outro conto, hein, hein, hein? Leria com o mesmo prazer imenso que li esse agora!
Albir disse…
"Arrombar aquela porta e me jogar dentro do que resta daquela história".
Que imagem mais forte, Ana!
Que beleza!

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