VIDA-AQUARELA >>> Nádia Coldebella

Uma mulher como as outras caminha pela rua.

Tem 40 ou 50 ou 60 anos, não dá para definir. Os cabelos já não estão cuidados. Alguns brancos, outros de cor indefinida. Seus rosto traz um cansaço de uma vida, sabe-se Deus como foi vivida. Em volta dos olhos, os vincos já são profundos, abismos em que ela tenta não cair. O peso das maternidades, das ansiedades, da idade, dos ferimentos e das amarguras já se transmutaram em gordura que se acumulam em torno da cintura e remoldaram os quadris. 

O que ela veste não lhe cai bem, mas ela ignora.

O corpo insinua-se para baixo, mas ela ainda procura manter-se ereta. Ainda não é hora. Mas ela sabe que seu destino, em alguns anos, será ali mesmo, o chão. Ela sabe. A gravidade e o tempo têm feito seu trabalho. Perfeitamente. E ela mesma as vezes anseia pelo desfecho da própria vida.

Ela procura ignorar sua própria imagem diante dos espelhos e das vidraças.

Elas impiedosamente refletem o que ela não quer ver. Alguém também se faz de espelho e diz que ela não se olha porque não quer se ver. Isso a fere, não pela verdade dita, mas pela crueldade das palavras. Alguém usou da verdade só para lhe ferir, como se ela não soubesse o que vê. Mas não é a verdade que a fere, é intenção de alguém feri-la. É a maldade, a mesma que ela não quer ver em si.

Sim, ela já não suporta ver-se.

Ali a sua frente, refletida na vidraça-espelho e na retina de seus próprios olhos, está uma massa disforme, defeituosa, de algo que poderia ter sido e não foi. Está consciente do desconforto que sente em vestir a própria pele. Não sabe o que aconteceu, não sabe como deixou de ser criança e como chegou ali. Não sabe como se tornou o que agora é.

Quando ela se vê, não sabe mais o que é. 


Querida criança, você é vida-aquarela. Você é o pigmento que colore a água. Você se espalha pela vida em mil matizes. Seu limite é onde a água alcança. Como a tinta, você surpreende, ninguém te controla. Seus borrões ensinam que tudo deve ser integrado, porque é este borrão que faz a obra única. O artista nada faz, apenas coloca você-pigmento e admira. Nenhum espelho pode te refletir de verdade, porque você nunca está pronta, sempre pode mudar-se, sempre um pingo de água pode lhe dar outro sentido.

Você é vida-aquarela. Teu desconforto sob a própria pele é o trabalho da tinta, que ainda não parou de espalhar-se pela vida.

Infeliz é quem te fere. Esse só vê preto, branco e cinza. 


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Comentários

Jander disse…
A crueldade da verdade é uma das piores, porque tenta disfarçar o dolo com essa fantasia meia-boca de sinceridade. Nada que você não tenha dito com mais competência no seu próprio texto, né? Lindo, lindo.
Anônimo disse…
Os apelos e as exigências de um mundo cada vez mais hedonista bloqueiam o ser de se bem querer. Vivemos a tragédia universal de uma harmonização sempre desastrosa. Não espaço para um amor próprio que não passe, obrigatoriamente, pelo outro. André Ferrer aqui.
Zoraya Cesar disse…
Nádia, Nádia, Nádia. Que texto pungente. Reflexo da vida de tanta gente que carrega o mundo nas costas e depois o mundo cospe na cara delas. Para as mulheres a passagem do tempo é ainda mais cruel, pq as pessoas as escolhem como alvo de suas 'verdades' travestidas de sinceridade.
A mensagem final linda, linda, linda como uma aquarela não consegue colorir os parágrafos iniciais, fortíssimos e perturbadores. Vou lê-la depois, em separado, enqto vejo o belíssimo vídeo q vc fez
Mauro Fregolon disse…
Ela ten menos de 55, depois a pessoa passa a valorizar mais a própria experiência.
Não que não possa se magoar ainda, mas o couro vai calejando. Eu fico surpreso com tanta gente boa que espera pra surtar depois de certa idade :-(
Eu, por mim não vejo a hora de me aposentar e tentar a vida como roteirista...
sergio geia disse…
Impactado aqui com seu texto. E especialmente com seu vídeo. Que vídeo é esse, Nádia? O nosso limite é onde a água alcança. Deus, quanta coisa pra ser debulhada. Pra se ler/assistir uma, duas, três, dez vezes. Parabéns!
Whisner Fraga disse…
Que crônica forte! Abraços.
Ana Raja disse…
Nádia, fiquei emocionada com o seu texto.
Somos todas "vida-aquarela".
Albir disse…
Nádia, Nádia, quando você desnuda a verdade, ela pode ser mais aterradora que as escamas, garras e chifres dos personagens mais fantásticos da sua ficção. Brilhante!
Nadia Coldebella disse…
Muito obrigado pelos comentários generosos!

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