TEMPESTADE >> Carla Dias


Havia roupas espalhadas na área de serviço. Vento de arrebentar varais passava por lá; visita inesperada de desarranjar organização de qualquer autoria, civil ou empresarial; cpf ou cnpj. O noticiário avisou que o dia sofreria de tempestade; seus adeptos torceram para que ela chegasse logo, pois precisavam criar notícias. Não sabiam mais viver sem ela, a história-destaque do cardápio do dia.

A tempestade contrariou os leitores de futuro, escorregando pelas encostas dos planejamentos, desmontando previsões e desligando a eletricidade. O vento sacudia árvores e toldos, reverberava sua presença pelos vãos, descompensava conexões.

Enxergou beleza no revidar do vento à impertinência das paredes ao tentar bloqueá-lo. Nunca gostou de ser ilhado, visto que isso sempre o fazia pensar no que jamais pensaria se pudesse fugir do assunto. Há tempos se cansou de esmiuçar fervuras internas, atendo-se às tempestades controláveis.

Até a agitação de fechar portas e janelas ser estancada pela beleza brutal da verdade: nunca as controlara de fato.

Parado no meio da sala, pensava sobre o que mais caberia naquele espaço além de móveis e utensílios. Começou a sentir a gastura de quem se vê acompanhado por desejos e mágoas escondidos debaixo de tapetes e da geografia dos sonhos inspirados por catálogos de produtos fisgadores de atenção. Fugia da solidão do quarto ao cair no sono, ali mesmo, espectador de desconhecidos que moravam em uma tela desligada por timer. 

Não naquele noite. A tempestade o queria acordado e desligou suas distrações.

Deslizou a porta de vidro, sentou-se no chão da varanda entre peças de roupas despencadas do varal. O vento zunindo em seus ouvidos, lambendo seu corpo, despenteando seus cabelos e seus pensamentos.  

Imagem © Julius H. por Pixabay

carladias.com.br

 

Comentários

Anônimo disse…
O barômetro poético da Carla sempre bem regulado. André Ferrer Aqui.
Lady Killer disse…
"A tempestade contrariou os leitores de futuro, escorregando pelas encostas dos planejamentos, desmontando previsões e desligando a eletricidade." Uaaaa, mais uma das sentenças matadoras da D. Carla Dias, Princesa das Palavras. E que descrição, meu Deus, camada por camada, até nos deixar, a nós também, sentados no meio da varanda, por entre vendavais de acontecimentos, no meio da turbulências da vida espalhada pelo chão, a gente sentado, como se nada acontecesse. Não vou saber explicar o quanto amei esse texto. Simplesmente muito.
Ana Raja disse…
Carlinha, a sua escrita é encantadora!
sergio geia disse…
"sentou-se no chão da varanda entre peças de roupas despencadas do varal. O vento zunindo em seus ouvidos". Uau! Que imagem para fechar a porta do conto.
Jander Minesso disse…
A vida tem essa mania de mandar umas tempestades de vez em quando e não há parede que segure, mesmo. Mais uma aula sua, Carlandreia.
Albir disse…
Quando Carla escreve, a gente sente o vento açoitando e a chuva encharcando a alma, e segura nas mãos os sentimentos.
Nadia Coldebella disse…
Eu também adoro tempestades! As vezes elas chegam em boa hora pra distrair a gente dos desmoronamentos, terremotos, tsunamis e furacões internos.
São revoltas da natureza muito poéticas, maravilhosas de serem apreciadas quando seu olhar pode se perder no horizonte. Enchem os olhos!
Lindo texto!

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