TRANSMUTAÇÃO >>> NÁDIA COLDEBELLA
- Conto e reconto essa história mil vezes para mim mesma, dizia ela, imersa na profundidade de seus botões. Eu acordo com o peito contorcendo em um sentimento quente, pesado e dolorido. Talvez seja angústia, talvez seja ansiedade. É um misto de dor e expectativa, uma expectativa de algo iminente que não quero que aconteça. Porém, na maior parte das vezes não acontece nada.
- Isso é bom, não é? - Ela escutou alguém falando e olhou pros lados, mas não tinha ninguém. Seria de dentro de sua cabeça?
- Bom? - Ela resolveu fazer de conta que era tudo muito natural. Estava vivendo uma realidade surreal dentro e fora de casa, então, porque uma vozinha de interlocutor desconhecido iria assustá-la? - Bom é questão de ponto de vista, isso eu posso te afirmar. - Ela deu um profundo suspiro. - Quando acontece alguma coisa, esse sentimento quente, pesado e dolorido se transmuta. Ele fica mais pesado, mais dolorido. Vira uma agulha afiada no peito. Confesso que fico muito mal. Quando não acontece, o sentimento fica ali, dia após dia, no vazio do nada que não acontece, esperando algum momento. Ele fica, entende? Não é que eu quero que aconteça, eu quero que não aconteça, mas também não quero essa pedra quente em mim…
Ela esperou um pouco, pra ver se outra pergunta se formava, mas ninguém perguntou mais nada. Ai, aos poucos, foi sentindo um grande peso. Provavelmente estou entrando de volta no meu corpo, pensou, despertando vagarosa e dolorosamente. E antes de abrir os olhos, entendeu que aquele diálogo improvável acontecia dentro de sua cabeça.
Ela abriu os olhos e ficou para se observar. Fazia dois dias que o sentimento pesado, quente e dolorido estava machucando seu peito. Ele levou uns segundos até aparecer hoje de manhã, mas estava lá, firme, batendo cartão. Hoje mais forte que ontem, ontem mais forte que antes de ontem. Ele esperava, como um verme pronto para devorar um cadáver em decomposição. Ele esperava acontecer, mas ontem e antes de ontem, nada.
Mas hoje sim, hoje era domingo de manhã, ela podia ficar um pouco mais na cama. O marido foi quem levantou para fazer o café e ela ficou ali, observando, sentindo o sentimento corroer o seu peito. A expectativa. A maldita e desnecessária expectativa, quente, dura e certa.
A menina entrou no quarto confusa. Ela disse: Deita aqui, meu amor, perto da mamãe. E com a criança do lado, o sentimento afrouxou, foi embora por uns segundos, e ela pôs-se a conversar animadamente com a filha. Mas curvou-se para o lado um pouco e ao fazer a pergunta, não obteve resposta. Antes de virar, já sabia.
Olhou para a criança, que se desconectara completamente. Só o corpo estava ali, a consciência dela não. A consciência dela está bem longe daqui, dissera a médica. E durante os minutos que se seguiram, ela entendeu que o sentimento duro, quente, pesado, não tinha afrouxado. Ele estava transmutando-se, igual uma larva que se transmuta em uma mariposa horrorosa, porque enquanto a menina tinha a crise, ele ressurgia, como uma faca de mil pontas, afiada e cortante, perfurando o coração.
A criança permaneceu na inconsciência, cinco, dez minutos. Foi voltando aos poucos, queria tomar café. Enquanto a menina levantava-se, a mãe sentou na cama. Ficou ali, olhos fixos no nada. Uma profunda lentidão tomou conta dos seus movimentos, e, quando o sentimento fincou os espinhos penetrantes em sua carne, quando ele sufocou sua garganta e enfiou as garras em cada músculo do seu corpo, ela não reagiu. Nada pensou, apenas disse.
- Estou oca.
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