MINHA CONTRIBUIÇÃO À QUALIDADE DO AR >> whisner fraga

 


o despertador não perdoa: cinco horas, 

mas dormi às nove da noite anterior, são oito de sono, como recomenda a ayurveda,

a calça, a camisa, a jaqueta no criado, dá tempo de um banho?, vamos arriscar,

chá, mingau, os últimos detalhes que a preguiça não havia me deixado resolver e pronto,

vamos de carro: pôxa, mas é uber, estou contribuindo com a sobrevivência dos trabalhadores, escravos, você quer dizer, né?, aí o homem me lembra da marcha para jesus, isso com dois minutos de rodagem, é amanhã, marcha para, marcha por, marcha com?, faço malabarismo com as palavras, mas em silêncio, pois não dá para correr riscos às seis da matina,

você sabe o que comemoram no corpus christi?, e o motorista rebateu, airoso: é o corpo de cristo, e, mesmo sendo seis e quinze, argumentei que isso eu sabia, que havia assistido a muitas missas em latim: o que significa o corpo de cristo?, por que os restos mortais que sequer existem, de alguém supostamente morto há dois mil e vinte e três anos ainda é reverenciado?, era uma questão verdadeira,

não fui adiante, porque eu precisava chegar, bater o ponto e garantir parte do leite da casa, leite de castanha, sublinhe-se, mas ele foi lá no celular, pesquisou: é uma homenagem à eucaristia, e eu imaginei assim, a marcha para jesus não era um negócio evangélico?, nem fui adiante nesse inquérito, pois requereria novos conceitos e discussões, e não é bom nos alongarmos em temas como futebol, religião e dívidas, ainda mais nos tempos hodiernos,

aí esse vocábulo pomposo me pegou, danei a refletir sobre a época em que deixaram de falar vossa mercê e substituíram por vossemecê e assim foi, até chegar ao álbum do caetano, um singelo e eficiente cê, e isso me surgiu porque estava estudando um antigo tomo (obrigado tradutor de poe) de ciências ancestrais, quando me deparei com o termo, vossa mercê, 

foi minha vez de investigar e, no meio do processo, estávamos à porta do campus, paguei a viagem no aplicativo, ainda recomendei um bom dia, deixei lá uma miserável gorjeta, a consciência pesada, tanto pela sobrepaga ridícula quanto pela poluição despejada graças à minha necessidade de locomoção,

um estudante me vê, me para na entrada: professor, tem como o senhor me passar um trabalho extra pra ajudar na nota?,

véspera de corpus christi. 


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imagem: dall-e.

Comentários

Jander disse…
Essa culpa uberista eu conheço bem. Tem a ifoodiana, que é igualmente ruim. Uma dose de argumento neoliberal ajuda a diminuir a dor na hora, mas enche o saco porque tem que ficar reaplicando. E sobre o texto: belíssimo retrato do cotidiano, Whisner. Coisa boa a gente ler algo e se identificar com o personagem no bem e no mal. Cê mandou muito.
Ana Raja disse…
Que texto bacana. Você consegue desenhar a cena, o momento. Vou de espectadora nessa viagem!
sergio geia disse…
São tantas culpas, Whisner. Belo retrato do cotidiano.
Albir disse…
Muitas questões que também não respondo. Quando tiver as respostas, faça um texto extra para ajudar na minha nota!
Abraço, Whisner!
Nadia Coldebella disse…
Uma verdadeira crônica!Nossa modernidade nos dá outros pontos de discussão bem interessantes, não acha? E eu me divirto com esses pensamentos aleatórios, cheios de profundidade e nexo, que se associam a qualquer palavra dita as seis da manhã!!
Grande abraço!

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