SOB O EFEITO DAS PALAVRAS >> André Ferrer

 — Vamos! — disse. — Cuidem dessa linha homens.

Ele ajeitou a viseira na frente do seu rosto. Àquela altura, o tenente enxergava pouco. A escuridão. A luz filtrada pela fumaça e pelos escudos dos homens que comandava. Tudo, naquela repartição, estava mergulhado no caos.

— Amigo, erga o seu escudo. Erga.

O soldado obedeceu. Levantou o braço, que já estava cansado. A linha de escudos continha os objetos lançados e um jato de água vindo de uma das mangueiras de incêndio. Então, um homem saltou contra o mesmo soldado, que deixou cair o spray de pimenta. Ele conseguiu empurrar o invasor, que desabou sentado. Enquanto isso, o tenente se abaixou, apanhou o tubo e entregou ao soldado, que já tinha voltado à linha.

Imagem: Pexels
De repente, uma cadeira bateu na borda superior de um escudo. A tropa se abaixou. Então, a linha ficou parada por alguns segundos. O tenente gesticulou antes que os invasores se aproximassem da barreira. Todos que estavam por perto compreenderam.

— Pelo amor de Deus avancem! — disse ele enquanto os soldados respondiam com sprays de pimenta na direção dos invasores. O tenente tossia e ajeitava a viseira diante do rosto.

A fim de encontrar alguma limpeza, olhou para cima. O teto branco. Sempre branco. A única coisa que ele conseguia ver, de forma direta, sem que os pedaços de madeira, os jatos de água ou a fumaça atrapalhassem, era aquele teto branco.

Sem tudo aquilo, estaria em casa e o domingo seria mais um entre dias comuns de treinamento monótono e sentinelas mais do que previsíveis. Acordaria tarde. A macarronada sobre a mesa. O descanso, no início da tarde, com a família. Fatias de melancia ou bolas de sorvete consumidas na sua rede enquanto, lá fora — na rua das Flores —, o dia seguiria silencioso e em paz. Haveria, também, os pequenos no gramado. Uma fila deles para utilizar o balanço instalado num canto. Um cenário quebrado por gente com a qual, até aquele dia, ele jamais tinha se importado. Ele não sabia que palavras tão soltas e espaçadas seriam capazes de produzir tamanho inferno.

Por causa daquilo, a linha de defesa precisava avançar. Então, o tenente olhou para cima. Realmente, a única visão era o teto. Branco. Sempre branco.

— Avante — disse ele. — Cuidem da linha. Ergam os escudos.

Naquele teto, mais ou menos na metade da repartição invadida, existia uma referência. Um relevo. Uma viga. Sendo assim, o tenente planejava empurrar a multidão para além daquele ponto. Caso conseguisse, manteria as pessoas longe da outra metade do salão. O estrago seria menor. Mas havia um problema: o tenente estava perdido. Só enxergava a escuridão e a luz difusa filtrada pelos escudos dos homens que comandava. Quando olhava para cima, via o teto branco. Nada mais.

O jato de água batia com força nos escudos. Ele ia e voltava sem trégua. Sempre ao longo da barreira. Então, alguém soltou a formação. O jato furou a linha. Veio bater no peito do tenente, que caiu.

— Cuidem da linha — disse ele. As mãos espalmadas no chão. A cabeça inclinada para trás.

Apenas o surgimento da tal viga, lá em cima, seria capaz de orientá-lo, mas o teto branco, até aquele instante, era tudo o que tinha visto. Seu trabalho, naquele inferno, resumia-se, agora, a avançar. Tentava, com todas as suas forças, encontrar o ponto de referência.

— Continuem — disse ele enquanto se levantava. O corpo dobrado para a frente. O capacete torto. Com as mãos nas pernas, ergueu-se. Correu para a linha.

— Não abram. Pelo amor de Deus, avancem.

Os homens lançaram bombas e novas nuvens de pimenta caíram sobre a multidão, que recuava mais de vagar. Logo, o jato de água voltou a explodir nos escudos. O tenente olhou para o alto. A pintura branca do teto. Apenas o branco incessante do teto lá em cima.

— Por que paramos? Ainda não chegamos a lugar algum. Homens, fechem essa linha.

De fato, pensou, certas pessoas influentes costumam dizer o que bem entendem.

— Fechem essa linha — repetiu. Os olhos voltados para o alto.

Onde diabos estava o ponto de referência? A viga. A única garantia de que a metade daquele lugar, pelo menos, ficaria ilesa? O tenente apanhou o escudo de um dos homens, que acabara de ajoelhar-se. Quando ele tomou o lugar vago na linha, junto dos homens exaustos, um pedaço de madeira ricocheteou no escudo. Então, o tenente voltou a varrer o teto com os olhos e, uma vez mais, encontrou o branco da parede e o cinza da fumaça. Ora! Sem ter ainda enxergado o relevo no teto, os olhos ardendo, a garganta irritada, ele pensava que a rua das Flores, o espaço diante da sua casa, talvez também estivesse ocupado. O balanço das crianças, por causa de tudo o que fora dito, completamente destruído àquelas horas.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Nossa, que texto! Que recorte mais angustiante, instigante e surpreendente! E que frustrante não saber o que vem depois, nem saber o contexto, apenas esse recorte! Acho que vc me deixou com a mesma sensação que o tenente estava, também estou procurando uma viga no teto para entender onde isso vai dar. Literalmente, me deixou sob o efeito das palavras. E da expectativa.
Grande abraço!
Jander disse…
Cara, chega a sufocar até a gente que só tá lendo. Foda demais.
Zoraya Cesar disse…
Repetindo a Nádia, que texto! Angustiante da primeira à última linha, opressivo, assustador. Quase um conto de terror, e numa cadência!
Os recortes entre a pasmaceira familiar e apreciada do domingo e os momentos de tensão ficararm perfeitos.
E a sutileza de nao revelar o que provocara tudo aquilo, apenas insinuar que alguma palavra mal dita numa hora mal azada provocara um evento bélico de proporções incalculáveis.
E a angústia do tenente, tentando achar algo em que se orientar!
André... que texto!
sergio geia disse…
Belo recorte, André. Que grandes homens esses que lutaram contra o motim instalado. Certas pessoas que ocupam certos cargos precisam medir as palavras antes de abrir a boca.
Albir disse…
Deu pra sentir até o gás impedindo a respiração, sensação que não sinto desde a juventude nos anos de chumbo. Angústia sufocante. Muito bom, André!

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