NATURAL >> Carla Dias
Um deles compartilhava os corredores de seu prédio. O sorriso aberto em dias de semana; apagado, aos sábados e domingos. Gostava de deixar a porta do apartamento aberta, um convite silencioso para os transeuntes se atreverem a compartilhar de seu espaço. Raramente alguém atendia ao insinuado.
Esperançosos profissionais o mantiveram na linha, clareando sua mente para o que seria incapaz de desejar. Ser inteiro, para ele, era se reconhecer no controle, até mesmo do que lhe emocionava na espontaneidade. Sorria, gargalhava até. Divertia-se, aprendia, fazia-se presente, cumpria papeis como todos, mas se mantinha sempre a uma distância segura.
Nasceu sozinho, viveu sozinho, morrer sozinho lhe parecia natural.
Entre um momento e outro, deliciava-se com descobertas raramente significativas para outra pessoa. Gostava da simplicidade: barulho dos carros, vindo da estrada principal e chegando ao seu apartamento fantasiado de som de mar. O cheiro do café sendo coado na cozinha. O momento em que as luzes das casas começavam a ser acendidas, recebendo a noite. O batucar dos saltos dos sapatos do vendedor de flores, que assumiu o posto de compartilhador de beleza, no outro lado da rua, e gostava de fazer de conta que era dançarino de flamenco.
Com o tempo, a simplicidade se tornou complicada, os barulhos, mais altos, beirando o insuportável. O estômago passou a discordar dos cheiros. Andava entregue ao escuro da casa, protegido pelas janelas trancadas. A beleza parecia ter se mudado de planeta.
Nasceu sozinho, viveu sozinho. Morrer sozinho já não lhe parecia mais natural.
Comentários
Acho que quando somos jovens, vivemos mais do lado de fora do que de dentro, não é? A sensação de onipotência, mesmo que inconsciente, é quase que inebriante. Podemos muito, nada importa, viva-se como quiser, não tem importância, eu no controle, deixa a vida me levar, vida leva eu...
Envelhecer pode trazer sabedoria, mas com certeza traz humilhação: podemos sentir falta dos desapegos, querer o que geralmente desprezamos, mudar nossa lista de coisas importantes, nos arrepender das decisões tomadas e questionar a direção que a vida tomou.
Pra mim, seu texto me fez pensar que talvez eu deva repensar logo nas minhas próprias listas de importância, desapego e desprezo. Antes que a velhice me cobre. Se bem que vai cobrar de qualquer jeito.