NATURAL >> Carla Dias


Abominava o alongar pequenas tragédias que desenhavam o desfecho recauchutado para servir às tramas de novela e às histórias de fim de tarde contadas por esperançosos profissionais. Não se divertia ao observá-los, nada de acordá-los para a ira ao mencionar impossibilidades. Entretanto, algo nele se deliciava, a ponto de fazê-lo sentir culpa — por alguns segundos, mas culpa por considerá-los uma ode ao desimportante.

Um deles compartilhava os corredores de seu prédio. O sorriso aberto em dias de semana; apagado, aos sábados e domingos. Gostava de deixar a porta do apartamento aberta, um convite silencioso para os transeuntes se atreverem a compartilhar de seu espaço. Raramente alguém atendia ao insinuado.

Esperançosos profissionais o mantiveram na linha, clareando sua mente para o que seria incapaz de desejar. Ser inteiro, para ele, era se reconhecer no controle, até mesmo do que lhe emocionava na espontaneidade. Sorria, gargalhava até. Divertia-se, aprendia, fazia-se presente, cumpria papeis como todos, mas se mantinha sempre a uma distância segura.    

Nasceu sozinho, viveu sozinho, morrer sozinho lhe parecia natural.

Entre um momento e outro, deliciava-se com descobertas raramente significativas para outra pessoa. Gostava da simplicidade: barulho dos carros, vindo da estrada principal e chegando ao seu apartamento fantasiado de som de mar. O cheiro do café sendo coado na cozinha. O momento em que as luzes das casas começavam a ser acendidas, recebendo a noite. O batucar dos saltos dos sapatos do vendedor de flores, que assumiu o posto de compartilhador de beleza, no outro lado da rua, e gostava de fazer de conta que era dançarino de flamenco. 

Com o tempo, a simplicidade se tornou complicada, os barulhos, mais altos, beirando o insuportável. O estômago passou a discordar dos cheiros. Andava entregue ao escuro da casa, protegido pelas janelas trancadas. A beleza parecia ter se mudado de planeta. 

Nasceu sozinho, viveu sozinho. Morrer sozinho já não lhe parecia mais natural.  


Imagem de 愚木混株 Cdd20 por Pixabay

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Esse é um daqueles textos matadores, que chamam atenção para as inconsistências da existência que aparecem a medida que envelhecemos.
Acho que quando somos jovens, vivemos mais do lado de fora do que de dentro, não é? A sensação de onipotência, mesmo que inconsciente, é quase que inebriante. Podemos muito, nada importa, viva-se como quiser, não tem importância, eu no controle, deixa a vida me levar, vida leva eu...
Envelhecer pode trazer sabedoria, mas com certeza traz humilhação: podemos sentir falta dos desapegos, querer o que geralmente desprezamos, mudar nossa lista de coisas importantes, nos arrepender das decisões tomadas e questionar a direção que a vida tomou.
Pra mim, seu texto me fez pensar que talvez eu deva repensar logo nas minhas próprias listas de importância, desapego e desprezo. Antes que a velhice me cobre. Se bem que vai cobrar de qualquer jeito.
Minesso disse…
Minina, acabei de sair de uma sessão de terapia falando sobre o passar do tempo, o envelhecer. Haja sincronicidade. Pra variar, matou a pau, Carlandreia. Este texto foi daqueles em que parece que você tá andando por uns corredores espremidos e de repente desemboca numa verdade grande e nem sempre muito bonita, mas sempre verdadeira.
Zoraya Cesar disse…
Lá caio eu de novo na armadilha de ler D. Carla em horas impróprias - domingo à tarde ou qualquer noite da semana. Esse caminhar da inocência de ver a beleza das coisas até a morte de toda esperança em encontrar a beleza, a sutileza do envelhecimento do corpo, a o reconhecimento de que habitamos um mundo que já nos é inóspito... A poesia de Carla Dias a serviço da realidade - nela, nunca crua, mas igualmente dolorosa. Parabéns por um texto, como disse a nossa Countess, matador.
sergio geia disse…
Esse tempo é um perigo. Há uma frase que gosto muito, que tirei do filme As palavras: "Todos nós fazemos escolhas na vida, o difícil é conviver com elas".
Albir disse…
Quando a solidão já não basta, mas ficou tarde para as companhias.

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