SOBRE FILMES DE ARMINHAS >> André Ferrer

Fotograma de Gran Torino (2008)
Acredito que Gran Torino passou tão batido porque é anterior ao governo de Donald Trump, que teve início em 2017. Já longe do olho do furacão - muito embora o mundo ainda não tenha se livrado das bordas cheias de destroços -, é salutar que se assista - ou reassista - ao filme estrelado e dirigido por Clint Eastwood em 2008. É necessário ainda que, ao assistir, tenha-se em mente o inspetor Harry Callahan e a época em que os filmes de Dirty Harry foram produzidos.

As décadas de 1970 e 2010, a partir dos EUA, tiveram muitas semelhanças. Ambas castigaram os trabalhadores norteamericanos com crises econômicas. Ambas levantaram salvadores da pátria ligados à direita: Reagan e Trump. O resto do mundo só reproduziu a violência, o preconceito e o retrocesso em termos de direitos sociais.

Ao longo da sua carreira como diretor, Clint Eastwood deu sinais positivos. Demonstrou ter bom gosto. Descolou-se do cowboy e do policial rasos, que representam a solução dos problemas individuais e coletivos mediante uma arma de fogo. Tudo, realmente, parecia fluir para uma velhice, digamos, regenerativa e para um canto do cisne razoável, mas apareceu Gran Torino.

Uma vez mais, a crise e o clamor por um messias político inspiraram o velho Eastwood. Gran Torino é um produto da bolha imobiliária e da ferrenha concorrência asiática, na indústria automobilística, que criaria desemprego e fortaleceria Trump. A vizinhança asiática, no filme, e os muros que o protagonista insiste em construir dizem respeito ao clima instalado no país desde a ascensão e vitória de Barack Obama.

Walt Kowalski era um metalúrgico aposentado da Ford. Seu velho bairro “sofria” a desvalorização econômica e a ocupação por imigrantes latinos e asiáticos. Então, foi através do incômodo em relação ao diferente que, aos poucos, o inspetor Harry Callahan - lá dos anos de 1970 - começou a se revelar na figura do idoso e beberrão Kowalski. O interessante foi que, enquanto isso acontecia, a amizade entre o velho e um garoto imigrante crescia e tratava de edulcorar o inevitável revival de Dirty Harry em plenos anos 2000.

Além de inevitável, trata-se de “o revival possível” do herói vazio e violento. Em 2008, afinal - ao contrário do que ocorria em 1971 -, a arma como solução já era uma ideia um tanto quanto cancelável por uma parte pesada da população. Eastwood, em Gran Torino, criou uma espécie invertida e patética de senhor Miyagi do Magnum 357. Um mestre que, na prática, tem mais a aprender do que a ensinar. Muito. Mas muito mais do que pareceu aprender no filme.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Uma análise muito interessante, André! Eu sou suspeitíssima, gosto de tudo no e do Clint Eastwood. Lembrando que, em Gran Torino, apesar do estranhamento e rejeições iniciais, ele meio que 'depurou' a coisa e acabou por ver que nao eram todos farinha do mesmo saco. E se sacrificou em nome de um valor maior. Análise mais que bem vinda.
Anônimo disse…
Grato Zoraya. Adorei o seu comentário. Sim. Houve uma depuração, mas poderia ter sido algo maior. (Se bem que para queimar o carma do Harry...) Como encerrei a crônica: deveria ter aprendido mais, aquele "mestre". Terminou com um sorriso laranja-Trump. André Ferrer aqui.
Nadia Coldebella disse…
Esse eu não assisti, mas vou colocar na lista.
Aliás, suas críticas são ótimas, vc leva muito jeito nessas análises: tem uma escrita fluida e mordaz, que instiga o leitor.
Bem bacana!
Albir disse…
Brilhante, André!
Cada vez melhores essas misturas de crítica de cinema e análise sociopolítica que você faz.
Abraço

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