CAMINHOS DA FÉ >> Ana Raja
Laura...
Eu a conheci
na adolescência e a admirava deveras. Parecia ser uns 20 anos mais velha que eu.
Trabalhava no caixa da padaria com nome de santo, a um quarteirão de casa.
Não
éramos amigas. Além do nome, não sabia da sua vida. Só sei que a admirava. Nem
sei se é essa a palavra mais adequada.
Eu
costumava lanchar na São Bento, no final da tarde. Pedia suco de laranja no
verão e chocolate quente no inverno; um bauru ou uma fatia de torta de morango.
Prestar atenção em Laura preenchia a espera do pedido. Ela oferecia um sorriso
azul; eu gostava de seus cabelos escuros, de corte reto. Usava uma presilha nos
fios lisos, que os impediam de cair no rosto. Imaginava que ela mantinha uma
coleção dessas presilhas em uma caixa de sapatos encapada com cetim florido;
cores variadas. Eu fazia a ligação das cores de acordo com o humor dela. Será
que havia relação?
O
sorriso de Laura foi o mesmo em todas as vezes em que estive lá. O colorido poderia
representar alegria, fé ou qualquer outra coisa que não sei explicar. Nunca a
vi por inteiro. Atendia sentada em uma cadeira, do outro lado do balcão. Ela me
lembrava um anjo; parecia um busto de um anjo esculpido. Vestia uniforme, na
blusa branca o nome bordado do estabelecimento. Pensei muitas vezes se Laura
era uma pessoa de fé. A referência a um santo no nome do lugar em que
trabalhava, o sorriso de sempre, os cabelos presos e a voz doce se despedindo
dos clientes, desejando um vai com Deus.
Pensar
no motivo de ela me chamar tanto a atenção fazia parte do meu final de tarde.
Na época, não compreendia o motivo.
Hoje
devo ter o dobro da idade de Laura. Só agora compreendo o meu encantamento. Sou
uma pessoa de fé, não de templos, porém de confiança no que os meus olhos veem.
A fé está presente. A taturana de cabeça vermelha, que se esgueira pelas bordas
de uma lixeira... a fé está em suas minúsculas patas. A gruta onde alguns
santos são guardados, e os degraus que dão acesso a eles têm o número de contas
do rosário... a fé também se faz presente no caminho. A força da cachoeira que
molha o meu corpo, e leva o cansaço rio abaixo... a fé mergulha nas águas. O
cânion onde meus pés pisam num levitar mágico... a fé paira no seu espaço. O
gato que me recepciona na porta do restaurante — que produz e colhe da terra os
seus próprios ingredientes... a fé ronrona no peito daquele felino. O vento
batendo na minha face marcada pelo tempo... a fé mora no arrepio que o
invisível me provoca. O vinho e sua simbologia... há fé e sangue na taça que levanto.
Quando o estranho pergunta o meu nome, e então o repete em seguida... a fé
reina nas palavras.
O
passo recuado, o choro dos velhos, a ousadia dos jovens, o crucifixo deixado sobre
as tumbas dos cemitérios de beira de estrada, a montanha das tragédias, o
acalanto de mãe e a promessa de pai...
Há fé,
eu sei que há. Laura sempre foi fé.
Comentários
Partiu de um personagem singelo e doce, no qual você enxergou a fé e definiu tão bem.
Lendo esse seu lindíssimo texto, compreendo a sabedoria escondida por traz das palavras da minha filha: viver é um ato de fé.
Obrigada por nós contemplar com uma perspectiva que vai além das convenções!
Um gde abraço 🤗