O AMOR TAMBÉM É INCÔMODO >> Ana Raja


Trancou-se no quarto.

Não foi fácil: atravessou a sala com dificuldade em manter o equilíbrio, do nariz escorria uma coriza morna, os cabelos repartidos para o lado oposto ao costumeiro, as únicas palavras proferidas foram em resposta ao marido, que assistia ao futebol: me deixe em paz. Assim que pisou no primeiro degrau da escada, o choro cessou. Aprisionou o ar nos pulmões com o intuito de libertá-lo, aos poucos, até o esvaziamento de si. Suas mãos pequenas limpavam o rosto das sobras do líquido salgado, que lhe irritavam a pele desbotada. Seus pés conheciam a direção do destino. Tinha consciência de não ser sua primeira vez de clausura naquele quarto frio, de aflorar a clareza, mesmo que à força. Bateu a porta tão forte, que o segundo andar da casa estremeceu, como toda vez que ela se encanta com o lá fora.

Durante sua inquietude, a trilha sonora é do marido preparando os pratos preferidos dela. Nunca foi bom com as tampas de panela. Os perfumes que sente vindos da cozinha atestam o de sempre: ele oferecerá três refeições: café da manhã, almoço e jantar. Às vezes, também tem chá de camomila, um pouco de conversa e até benzimento. Mas o silêncio de Virgínia responde a todas as ofertas dele. 

A emoção desmedida a arrastou por estradas sinuosas, um contratempo fada-do a acontecer em flashes coloridos, em momentos repentinos na vida de quem vive à espera do amor. Faltou-lhe o ar, como se tivesse levado um soco no estômago ou levitasse em um pesadelo bom. Sabotou a quietude do con-quistado há tempos, das horas vazadas de ponteiros de relógio.

Virgínia se deu conta de que o amor também é incômodo.

Aconteceu no café que frequentava. Ao se sentar à mesa, seu olhar o captou. Curvado sobre o computador, digitava com rapidez, os cabelos dançando, co-brindo seu rosto. Curiosa para conhecer o olhar daquele estranho, durante sete xícaras de café imaginou o que ele escrevia, para quem escrevia, qual seria a sua profissão... quem era ele. Durante sete meses, eles pertenceram ao mesmo lugar.

Diante do espelho, observa o trabalho do tempo. Se irrita com a flacidez oferecida; se encanta com o prazer recebido. Virgínia não é uma; há muitas vivendo naquele corpo. Diante da rebeldia das outras, ela precisa ficar ali, confinada em um universo controlável, acalmando a fúria do amor que renega.

Curar-se é imperativo.

Desce as escadas, passos cadenciados, faces coradas de maquiagem, cabe-los em ordem, pronta para reassumir seu papel. O vestido de sair roça sua pele domada. Ele a espera ao pé da escada, enfiado no terno de sempre. Infeliz, dá a mão ao marido e sai para o jantar de todos os sábados.

Virgínia, com um olhar de quem naufraga em alto-mar, diz em voz quase inaudível: esqueça. O marido pergunta: o quê?, ao que ela responde: que tal um vinho?


Imagem © Enrique Meseguer por Pixabay

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Que texto forte, hein Ana? Essas máscaras que usamos, esse ser vários em um, esse autodomínio descomedido... Dói demais hein?
Que texto instigador!
Albir disse…
Que beleza, Ana! Dá pra sentir a angústia dela como se fosse no nosso peito.
Zoraya Cesar disse…
Texto tipo porrada lateral, q pega de raspão mas machuca do mesmo jeito. Muito bom, mto denso, mto... todas nós? de alguma maneira?
Jander disse…
Gezus, que texto bonito. Doído que dá até falta de ar.
André Ferrer disse…
Visceral e com um toque de ternura. Belo texto Ana.

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