O TEMPO DA LOUCURA >> Ana Raja


Já vai tarde, já vai tarde...

O trabalho da casa era muito bem organizado entre os moradores. Dividiam o espaço havia muitos anos. Se conheceram em uma festa da empresa, na qual trabalhavam, mas em departamentos diferentes. Era uma época difícil para todos. Um vivendo o luto da mãe, outro devastado pelo divórcio e o terceiro encarando as dificuldades da recuperação de uma cirurgia bariátrica.

A casa tinha espaço suficiente para todos e ainda contava com um quarto de hóspedes, apesar de nunca receberem convidados. 

Leandro era o mais prendado. Aprendeu a cozinhar com sua falecida mãe e herdou o caderno de receitas dela. Otacílio, um beberrão, nunca se conformou com a traição da ex-mulher. O tempo em que passava em casa era destinado à choradeira do divórcio. Antunes era magro, efeito da cirurgia bariátrica, e mesmo assim vivia de regime. Passava horas em seu quarto se olhando no espelho e subindo — nu — na balança, para ver se havia engordado. 

Antunes incomodava Leandro, que  se sentia ofendido a cada vez que sua comida era rejeitada pelo outro. Achava aquilo um desaforo e uma total falta de consideração, já que passava horas na cozinha elaborando os pratos mais sofisticados do caderno de receita de sua finada mãe.

O clima na casa começou a ficar pesado. Um desajuste de energia aconteceu durante o almoço da Páscoa. Antunes anunciou que não almoçaria, pois havia começado um regime novo. Leandro teve uma crise de raiva e jogou toda a comida que havia preparado no lixo. Depois desse episódio, decidiu que o amigo mal-agradecido deveria ir embora. Melhor, que Antunes e Otacílio deveriam se mudar de casa.

Obcecado com a ideia da expulsão, especialmente de Antunes — da sua casa e da sua vida —, passou a ter um comportamento estranho, sendo impossível aos outros saber se era de propósito ou se a loucura dominara a sua mente. O que se sabe é que Leandro hoje mora sozinho e canta, o tempo todo, a música que sua mãe gostava de escutar enquanto preparava a comida.

Já vai tarde, já vai tarde...chuva, chuva vai chegar
Vai embora pra sua casa...meu amor não viverá
Sobra o tempo de tormenta....lá, lá, lá, lá, lá



Imagem de Louise Dav por Pixabay


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Existem vários tipos de relação com a comida, e realmente há quem se enfureça ao ponto do desatino quando o prato q fez é rejeitado. No final das contas, todos três apegados ao passado e numa estranha relação com a comida. Leandro assumiu a tarefa da mãe falecida e nao perguntava se os companheiros queriam ou nao que ele cozinhasse para todos. O beberrão, bebê chorão, q só comia e e bebia, agarrado e casado com a dor da traição. E Antunes, sem se desligar de seu passado de gordo, não aproveitava a vida de magro. Três doentes. Jã vão tarde, já vão tarde... (juro q pensei q o Leandro ia matar os dois)
Nadia Coldebella disse…
Hum! Uma morte por causa de uma almôndega desprezada... Não me dá ideia, dona Zoraya!
Se bem, que numa análise mais profunda, a comida era o amor que juntava os amigos. Talvez a bariátrica foi a traição, que resultou no divórcio. Acabou que o cozinheiro ficou cantando, sem ter ninguém pra comer o seu amor - praticamente imitando o chororô do Otacílio.
Texto muito legal!

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