AS MARITACAS DA CASA LARANJA >> Sergio Geia

 


São duas. Estão sobre o telhado da casa laranja. De vez em quando uma delas, a maior, tenta bicar a outra. A que leva as bicadas parece berrar exasperada. Não é grito de socorro. Ela parece ter forças suficientes para dar um basta. É enfado. 
 
Tento retomar a leitura, mas elas estão à minha frente, em alvoroço, andando de um lado ao outro, bicando-se, a mais miúda aos berros. A história do livro que parecia potente, vai aos poucos perdendo a força, eu vou me envolvendo cada vez mais com a outra história: a das maritacas. 
 
Em uma de minhas interrupções, vejo que uma delas, a mais forte, desce sobre um pequeno toldo de proteção. A menor, ainda sobre o telhado, curva a pequena cabeça para espiar. O toldo protege uma pequena janela de correr que está aberta, e que deve dar para a cozinha. A maritaca examina, gruda os pés na ponta do toldo e fica de cabeça pra baixo, buscando uma forma de ali entrar. 
 
Alguns instantes de pequena indecisão e a menor, que até então acompanhava tudo do alto, voa também até o toldo e ficam as duas a confabular. 
 
Nessas alturas já fechei meu livro. Curioso, aguardava o desfecho. Até pondero sobre as consequências — maritacas também não medem as consequências? Se uma delas ou mesmo as duas conseguirem entrar na cozinha, sei não; de lá não sairão tão cedo, sem contar o susto da vizinha que, pela hora, dorme. 
 
Depois de muito confabular — é sério, elas conversam, na linguagem dos bichos, claro —, tentando encontrar maneiras para a execução do plano, uma delas desiste e volta ao telhado; a outra, maior e menos inteligente, ainda insiste com a ideia descabida. Após alguns instantes, ela também voa até o telhado encontrando novamente a sua parceira; as bicadas e os berros recomeçam. 
 
Preciso fazer o café, resolver assuntos, tomar decisões, o dia apenas começa. Antes de me levantar vejo que elas levantam primeiro, sobrevoam a grande mangueira, depois seguem na direção da Praça Santa Teresinha. Aos berros, sempre a bicar, sempre juntas. Na certa é amor, embora desconheçam o sentido dessa abstração. 
 
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Pollyana Gama disse…
Aqui em casa, em algumas épocas do ano, elas fazem uma festa só!! Sorte que dentro do “horário permitido”
sergio geia disse…
Suas maritacas são educadas rsrs. Aqui normalmente ocorre pela manhã, elas adoram acordar o povo.
Zoraya Cesar disse…
Pois esse povo nao sabe a sorte que tem em serem acordados por maritacas. Isso é o paraíso. Ao redor do mundo tem gente acordando ao som de tiros, gritos, desamor, solidão. Maritacas e galos podem me acordar a qq hora, eu amo. E vc, como sempre, pegando um caso trivial e transformando-o numa belezura, a poesia das pequenas coisas. Uma lufada de vento suave a ensolarar nosso domingo!
Anônimo disse…
Aquele instantêneo do mestre Geia.
Nadia Coldebella disse…
Quando eu e minha irmã éramos crianças, meu pai chamava a gente de maritacas: "suas duas maritacas...". Era dito com carinho e uma certa zoação, mas naquela idade eu não sabia bem o q era. Achava que era uma palavra estrangeira. Daí, quando cresci, certo dia, acordei com a gritaria de um bando de maritacas - não duas, um bando mesmo - e não pude deixar de pensar que, se meu pai fosse parecido comigo, teria sentido vontade de virar as maritacas do avesso.
Tô com um sentimento de nostalgia aqui...
sergio geia disse…
Obrigado, amigas e amigos pela leitura e comentários. Acordar ao som das maritacas também acho muito bom, Zoraya. Instantâneo mesmo, meu amigo; não posso deixar passar. Nádia, querida, a gente sempre tá sendo surpreendido, pode ser música, texto, palavras, cheiros. De repente, uma cena esquecida é apanhada da memória. Eu adoro.
Albir disse…
Nostálgico pra mim também. Não apenas maritacas, mas bandos de pássaros. Na infância vivi esse paraíso.
sergio geia disse…
Que beleza, Albir!

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