O PERDÃO TAMBÉM MATA >> SORAYA JORDÃO

 

Há duas semanas, programas de tevê, rádio e redes sociais têm se dedicado a expor os horrores vividos por uma jovem atriz em sua relação com os pais abusivos. Não faltam detalhes sórdidos e provas materiais. Um ritual de lavagem de roupa suja familiar, em praça pública, para deleite coletivo. A todo instante surge o depoimento de alguém que presenciou, percebeu ou desconfiou que a relação era tóxica e abusiva. Por que ninguém denunciou? Todos nós sabemos que narcisistas e abusadores podem ocupar as mais nobres funções sociais e familiares, mas, ainda assim, resistimos em acreditar. Romantizamos o amor, a maternidade, a paternidade e a religião de tal forma que facilitamos o abrigo de perversas criaturas nesses espaços de poder afetivo. E, pior, muitas vezes, defendemos o exercício do perdão em nome da manutenção desses laços que cremos indissolúveis. Da vítima, exigimos uma dose extra de bondade para entender as atrocidades cometidas ao longo da história . Fabrica-se a culpa para extrair submissão.

Diante de relações amorosas abusivas, acontece o extremo oposto. Entregamos à vítima um manual de atitudes e cortes a serem implementados e, rapidamente, esgotamos a paciência quando o fim não se anuncia. Ignoramos, com isso, que define-se a relação como tóxica exatamente porque, ainda que seja desastrosa, do ponto de vista emocional, em um nível mais profundo existe uma dependência, uma necessidade, uma urgência desse vínculo, difícil de ser rompida. Sobretudo porque os abusadores sabem coagir, seduzir, manipular e conduzir a situação a seu favor.

Nenhum de nós está livre de ser refém de armadilhas subjetivas, assim como ninguém deve ser considerado acima de qualquer suspeita. Estejamos atentos ao nosso entorno. E quando nos depararmos com uma pessoa encurralada em uma trama cruel, sejamos bons ouvintes e parceiros. Que nos importe mais a pessoa do que a fofoca; a saúde mental do que o exemplo moral. Que possamos entender, de uma vez por todas, que vínculos afetivos saudáveis enlaçam, não enforcam. Que toda relação tem um custo, não uma dívida eterna e impagável de gratidão.

Não é preciso perdoar para se reinventar e seguir em frente.

Amor é fio que envolve sem estrangular.

Comentários

sergio geia disse…
Caramba, Soraya, li sua crônica e percebi que o nosso modo de ver a situação se assemelha. Mas você, claro, com maestria, traduziu esse modo de pensar em palavras harmoniosas que deixam mais claro o pensamento.
Soraya Jordão disse…
Obrigada, Sergio, pela leitura carinhosa. Grande abraço.
Fatima disse…
Cirurgica como sempre!
Ana Raja disse…
A sua crônica é real e escrita lindamente. Às vezes sofremos, nos sentimos culpados e não conseguimos fugir de um relacionamento tóxico "executado" por pais que deveriam ser apenas amor.
Adoro te ver pensando o mundo através da sua escrita. ❤️
Soraya Jordão disse…
Obrigada pela leitura e retorno!
Jander Minesso disse…
Acompanhei de longe, mas a empatia do seu texto fez um contraste gigante com tudo mais que vi e li sobre o assunto até então. Parabéns, Soraya.
Soraya Jordão disse…
Obrigada, Jander! Adorei.
Zoraya Cesar disse…
Grande percepção, Soraya! Uma visão q envolve a compaixão e a paciência. E abarca todos as camadas. Uma relação tóxica às vezes é um vício, difícil sair, e não é com sermões morais q a gente ajuda a vítima. E, realmente, o perdão só é salvador quando a gente consegue se libertar do jugo, nao antes. Texto pra ser lembrado antes de julgarmos os outros. Mto bom mesmo. Reli.
Soraya Jordão disse…
Obrigada, Zoraya, pela leitura e retorno. Sim, um relação tóxica gera dependência e destruição, mas a pessoa , muitas vezes, não vê.
Maravilhoso!! Gostaria de postar no meu Instagram ��
Anônimo disse…
Nossa! Acabei de ler o texto da Nádia e o seu, Soraya, e percebi como eles se completam. Vivemos tempos bestiais em que os infortúnios são congelados para sempre nos bits dos algoritmos. Sempre à mão, com uma pesquisa rápida, podemos acessar (e relembrar) o caso que desejarmos e sobre quem desejarmos. Não é assombroso? Cada vez mais, o público se assemelha a uma revoada de abutres sobre o privado "vazado" de alguém.
Anônimo disse…
Nossa! Acabei de ler o texto da Nádia e o seu, Soraya, e percebi como eles se completam. Vivemos tempos bestiais em que os infortúnios são congelados para sempre nos bits dos algoritmos. Sempre à mão, com uma pesquisa rápida, podemos acessar (e relembrar) o caso que desejarmos e sobre quem desejarmos. Não é assombroso? Cada vez mais, o público se assemelha a uma revoada de abutres sobre o privado "vazado" de alguém. André Ferrer aqui.
Albir disse…
Parabéns, Soraya! Um texto impecável, que traduz melhor que eu consigo o que penso sobre esse tipo de opressão.
Nadia Coldebella disse…
Vc deu uma aula valiosa de psicologia e afeto em poucas linhas. Deveria ser texto obrigatório!

Gde Abç!

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