JEJUM >> Carla Dias


Parou de falar, não havia assunto que a atraísse para a conversa. No começo, as pessoas se incomodavam e tentavam arrancar palavras da boca dela. Quando estava na presença de outros, ficava no melhor lugar para uma ouvinte ocupar, e permitia o olhar caminhar pelo recinto, em busca de paisagem na qual estacionar. Passava tempo observando o pó grudado no azulejo branco da parede da cozinha, lugar mais movimentado da casa, distraindo-se com o som dos dizeres de seus compartilhadores de espaço. Diante das receitas requisitadas — destinadas a jamais serem lembradas; dos lamentos sobre o que não foi feito; da bagunça à qual era continuamente atribuída autoria alheia, ela se recolheu. Seu silêncio foi se tornando atrevidamente profundo, de cultivar esquecimento. Deu de se abster dos movimentos. De manhã, sentava-se na poltrona da sala, voltada para a janela que oferecia paisagem de avenida abarrotada de automóveis. Antes de escurecer, levantava-se e seguia para um banho demorado. Após uma reza atropelada, por fraquejar na língua desmaiada, arrastava-se em direção à cama. Então, faltou-lhe a compreensão dos verbos de conduzir reações. Alguns se atreveram a tentar arrancá-la de dentro dela aos berros; em vão. Espectadores de seu padecimento, agoniavam-se por serem obrigados a comprometer tempo e história com ela.

De tanto jejuar de buscas, passou a viver da fome do desprezo.

Imagem © Guilherme Gomes, por Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
E no final, não era um jejum intermitente.
Carla Dias disse…
Não era, Minesso. Cada um com seu pro... jejum. :)
Soraya Jordão disse…
Nesse caso, parece haver um certo prazer nesse jejum. A agonia fica com quem quer arrancar os verbos da boca da menina.
Zoraya Cesar disse…
Que história triste, Carlinha, parece um mergulho gradual na loucura que é perceber o quão sozinho somos. O jejum só é bom quando tem um sentido.Assim a gente nao se perde do porto. E que texto lindo hein?
Me identifiquei com a personagem e com os outros, em diferentes momentos da narração. Por um lado compreendendo o desinteresse pelas conversas superficiais, por outro entendendo que ela foi longe demais na sua apatia. Amei a frase final!!!
Ana Raja disse…
Acredito que muitas vezes nos falta a compreensão dos verbos em todos os seus sentidos. Lindo texto, Carlinha!
Albir disse…
Adaptou-se. Parece que o desprezo pode se equiparar ao jejum.
Nadia Coldebella disse…
Fico pensando se, talvez nesse caso específico, o jejum não era obrigatório, sob pena de maior padecimento... Talvez o que ela seja, mesmo, é muito lúcida.

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