A MULHER DO MEU PRIMO >> Zoraya Cesar



Criei um ranço da mulher de meu primo Nestor. 

Não porque ela fosse linda, loura de olhos verdes, boca de Angelina Jolie, corpo de Barbie. Não porque era simpática e atraente. 

Nem, tampouco, porque eu era gordota e baixinha, a cara espinhenta de chocolates, o cabelo oleoso e usasse horrendos óculos fundo de garrafa. 

Diriam vocês que eu tinha inveja. Mas estariam errados.

No começo, eu a venerava, sabe, aquela adoração que os desvalidos de beleza têm por estes entes superiores. Pra mim ela era uma deusa, e eu a olhava embevecida. 

Meu primo Nestor era alto, cabelos e olhos castanhos claros, queixo firme, voz serena. Se eu fosse linda casava com ele. Era meu tipo de homem e meu primo preferido, o único que não debochava da minha aparência e de eu preferir estudar a trabalhar.  Na família, ninguém tinha curso superior e todos estavam muito bem encaminhados, obrigado. Diziam que eu não queria era pegar no batente. Preguiçosa. Encostada. Mas eu não ligava. Sou uma pessoa boa.  

A casa antiga de minha avó tinha muitos cômodos e era, com perdão do trocadilho, cômodo (e mais barato) vivermos todos lá. Pra mim era ótimo. Quanto mais gente, menos reparavam em mim, ser desprezada te torna invisível, e isso tem suas vantagens. 

Só Nestor e Gisa, a soberana, a esposa, é que me davam, muito de vez em quando, umas migalhas de atenção, que eu comia faminta, o coração inchado de gratidão. 

Mas, afinal, eu a venerava ou a detestava? Ambos. 

Pra dizer a verdade, eu me penitenciava muito por estar criando ranço dela. Sou uma pessoa boa. À noite, eu ficava ajoelhada no milho, pra deixar de ser ingrata e invejosa. Pra ter certeza de que não estava com raiva por ser tão feia e desprezada quanto ela era bonita e adorada

Aos poucos, no entanto, me rendi. Tive de reconhecer que aqueles olhos não eram verde piscina, mas verde lodo. E, nas covinhas de sua face, quando ria, tinha fel. Sentia, em suas palavras meigas, um escárnio subentendido, que ninguém via, só eu. Eu vivia pendurada numa gangorra de sentimentos. 

E eis que meu primo Nestor adoeceu. Ele nunca fora inteiramente bom dos rins, mas apareceu de tudo nele, vômitos, convulsões, desmaios, neurastenias, enxaquecas, o diabo. Médicos, especialistas em esquisitices, doutores house, curandeiros, benzedeiras, ninguém descobria o que era. E ele cada vez mais magro e amarelo. Igrejas, centros de umbanda, kardecistas, japoneses, enfim, tudo foi tentado.

Gisa não permitiu que Nestor ficasse no hospital. Lá ninguém cuidaria dele como ela. A família concordou. Ele concordou. Eu nada falei, pois o que eu falasse não seria mesmo levado em consideração.

Tenho de reconhecer que ela se desvelava em cuidados. Dava banho, fazia as unhas, saía para comprar comida, dava na boca, ministrava os remédios. Nunca fora tão encantadora. Eu nunca tivera tanto ranço dela. Achava que tinha algo errado nessa perfeição toda. A essa altura já passara do milho para pequenas autoflagelações. Eu não podia deixar de ser uma pessoa boa, minha única qualidade, além da paciência. Tinha de combater aquele sentimento ruim. 

Nestor definhava, precisando de hemodiálise, a vida dele se transformando num fio. E Gisa lá, firme. Gostaria que fosse eu cuidando dele assim. 

Mas eu sou uma pessoa boa. Me vi na obrigação de ajudá-la em algumas tarefas, afinal, ela tinha que ir ao banheiro, dormir, comer, sair às compras, cozinhar. E nesses intervalos eu ajudava, muito discretamente, como é meu feitio. Por exemplo, dava, quando ninguém estava vendo, litros de suco de carambola para meu primo. Carambola sempre fora sua fruta preferida. 

Gisa fazia sopa de mandioca para ele, sendo mandioca outra coisa que ele adorava. 

Então tive uma luz. Uma luz e uma vontade de me punir andando descalça em cacos de vidro, por ser tão burra. 

Como não percebi antes? A maldita estava envenenando meu primo amado não aos poucos, mas aos muitos, com mandioca brava. Certeza, certeza, certezíssima eu não tinha, mas só podia ser! 

Claro! Ele fizera um seguro de vida para ela. 

Nestor não era rico, tipo rico ricaço, mas era bem de vida. A borracharia dele especializada em motos importadas tinha até filial! Os negócios estavam crescendo devagar, mas crescendo. Devagar demais para a ambição de Gisa, provavelmente. 

Eu poderia ter posto a boca no mundo, acabar com aquela farsa. Por que não o fiz?

Por três motivos. 

Já disse que sou uma pessoa boa. Nestor estava desenganado, iria morrer de qualquer jeito, para que aborrecê-lo? 

E, mesmo que investigassem, como provariam a intenção dela? Qualquer um pode se enganar com mandioca brava. 

Por fim, todos pensariam que eu inventei aquilo tudo por despeito e inveja, a rolha de poço preguiçosa e desenxabida preterida pelo primo.

Não, eu não falaria nada. Tinha outro plano.
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Ninguém acreditaria em mim, como ninguém acreditou quando Nestor, mesmo fraco do jeito que estava, atirou-se pela janela, deixando um singelo bilhete: ‘cansei’. 

E de todos os que não acreditaram, a mais incrédula foi a Gisa, a envenenadora dos olhos verdes pântano. 

Ela ficou sem nada, nada, nada. 

A cláusula do seguro cobria tudo: morte morrida, morte matada, abdução por extraterrestres, conversão ao talibã, tudo. Menos... suicídio.

E foi assim que Gisa pegou os trapos dela e sumiu. Pra onde, ninguém sabe, ninguém viu. 

Assim como ninguém sabe que eu li escondido as cláusulas do seguro, nem me viu subindo ao quarto para conversar com Nestor antes de ele morrer. 

Essa é uma das vantagens de ser desprezada. 

Sou uma pessoa boa. Não ia deixar meu primo sofrendo e ainda ser passado para trás por uma sirigaita aproveitadora. 

Eu era louca por aquele meu primo. 

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Carambola
- essa frutinha, tão linda e chique, contém caramboxina, um nomezinho engraçado para uma substância tão perigosa para doentes renais crônicos. Quando os rins não conseguem eliminá-la, ela vai se acumulando no organismo. Iingerida em grandes quantidades, pode levar à morte.  

Mandioca brava - libera altas quantidades de ácido cianídrico no organismo. Sua ingestão continuada, principalmente por 
 pessoas com saúde debilitada (ou crianças e idosos) pode levar à morte. 







Comentários

Antonio Fernando disse…
Bom demais, minha amiga policialesco de primeira!
Anônimo disse…
Uma dando carambola e a outra mandioca brava! O cara deve ter jogado pedra na cruz!
branco disse…
ser invisível não nos torna inexistentes.
não existem atenuantes para uma criatura insignificante, maldosa e, por consequência, infeliz.
como rotina, a autora utiliza-se de todo o seu arsenal de excelência para descrever e nos brindar com mais uma jó ia, principalmente no final, pois como sabemos, o mal sempre vence.
Nadia Coldebella disse…
Vc, minha amiga, vê veneno (e envenenamento) nas coisas pueris da vida... O que é ótimo, pois o que seria de nós, seus leitores sem as mortes justiceiras e piedosas?
A envenenadora gata logo vai acabar achando um outro maridão e nos teremos outra história, não é? Diz que sim, diz que sim! Siiiim?

A-do-ro!
Gde bjo!!!
Marcio disse…
E eu achava que estava imunizado para os caracteres ladykilléricos da literatura zorayacesariana...
Eu devo ser muito ingênuo, mesmo.
Já estou preparado para esoterismo, ocultismo, magia negra, feitiço brabo, ignomínias do baixo ventre, porrada, dedo no olho, facada, tiro, envenenamento, nêmesis em estado bruto.
Quase tudo.
Quase.
Depois de ler o texto a 12 por oito de pressão arterial, eis que, nas notas de rodapé, a pérfida autora me surpreende - e a única coisa que não surpreende, em Zoraya César, é a permanente capacidade de surpreender - destruindo COMPLETAMENTE a reputação da carambola.
Logo ela, cuja árvore frondosa guarnecia a entrada do jardim humilde da casa dos meus avós maternos, enchendo o ambiente com seu perfume inconfundível...
Uma fruta tão delicada, que tem o bom gosto de, ao ser seccionada transversalmente, apresentar-se na forma de uma estrela (será botafoguense??? Não seria mais próprio chamá-la de carambota???). Ou será a estrela carambólica apenas um pentagrama regular?
Não quero nem saber se a envenenadora foi a Gisa ou a narradora.
Só quero a minha carambola de volta.
Jander Minesso disse…
A insistência em afirmar que ela é uma pessoa boa foi uma belíssima antevisão, Zoraya. Mas o que deu o toque de terror, mesmo, foram as notas sobre a carambola e a mandioca brava no final. Parabéns por mais uma narrativa deliciosa e angustiante de acompanhar.
Erica disse…
Como uma pessoa tão boa pode ser tão burra? Logo carambola para um paciente renal? Você conseguiu arranjar duas assassinas para uma mesma vítima! Superação total! rsrs
Lady Killer disse…
Antonio Fernando - sempre fico feliz com seu comentário, meu amigo exigente!

Anônimo - hahahaha, pois é, se karma existe, deve ter sido por aí mesmo

branco - my lord white, a primeira parte de seu comentário foi bem no alvo. qto à segunda, só tenho a agradecer. E fazer o q, às vezes o mal vence sim. nem q seja momentaneamente.

Nádia - Countess, obrigada. Mas acho mais fácil as envenenadoras tentarem se matar, em um novo round de vingança e ódio. Mas... quem disse que a Gisa envenenou o marido? Nada foi provado, apenas conjecturado, veja bem.

Márcio - de todos, TODOS, os comentários ultragenerosos q vc já fez pra mim, esse último me fez rir de gargalhar! Obrigadíssima! Já reli umas três vezes, por puro ego e prazer e divertimento.

Jander - se vc viu um toquezinho de terror, já me dou por feliz e vc vem de narrativa deliciosa e angustiante? Cereja do bolo. E eu dei outras dicas: esse negócio de se autoflagelar pra purgar a consciência é coisa de assasinha louca hahahaha

Erica - kkkkk, a tal pessoa nao era boa nem burra. 'arranjar duas assassinas para uma mesma pessoa, superação total' hahahahahaha, gostei, me deu até um calorzinho aqui no coração.

A todos, obrigada pela leitura e comentários, sempre generosos!

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