AQUELE LUGAR >> Carla Dias


Morava onde poucos morariam se tivessem escolha, ao menos era o que escutava os pais comentarem na cozinha. Escutou outros segredos compartilhados entre eles. A mãe se sentava na cadeira, o pai permanecia em pé, encostado na pia. A cena era sempre a mesma,  os segredos mudavam, mas todos levavam à mesma pergunta: o que seria dos filhos se não saíssem daquele lugar?

Passou anos escutando segredos compartilhados durante aquele ritual. Assim ele soube da fragilidade da saúde da irmã mais nova, do amigo de escola ter sido preso por assaltar a mercearia, das dúvidas da mãe sobre o casamento, e do pai, idem.

Dependia do teor da conversa deles se iria para a cama rindo, curioso sobre alguém ou algum assunto, ou aos prantos. A última opção acontecia mais vezes. Costumava perguntar à professora o significado de palavras que escutava pela primeira vez durante sua vigília. Ela comentava sobre esse interesse poder ajudá-lo a conseguir um emprego fora dali, porque, o que seria dele se não saísse daquele lugar?

As paredes de madeira documentam a manifestação do tempo, descascadas, empenadas. Os dois cômodos já foram mais amplos, ao menos é como se lembra. Esgueirava-se da cama compartilhada com as duas irmãs e o irmão, encostava-se na parede, sentado no chão, e escutava a conversa deles como alguns vizinhos costumavam escutar rádio. O quarto dos pais era um colchão no chão, perto do fogão. Somente alguns anos depois, compreendeu que aquele não era o lugar preferido para a troca de segredos, mas o espaço que havia para eles.

Os irmãos se casaram e foram viver suas vidas em outro lugar. Ele ficou ali, escutando segredos até o pai morrer, e depois de alguns anos falando com o marido, como se ele estivesse ali, em pé, encostado na pia, a mãe também se cansou e partiu.

Ele tentou, mas não conseguiu abandonar a casa, apesar da insistência dos irmãos em acolhê-lo em sua realidade. Eles nunca souberam de muitos dos segredos que escutara naquela vigília, nem presenciaram as decisões mais difíceis que os pais tomaram, no desespero de quem não via saída.

Sabe que os pais tinham razão. Permanecer naquele lugar era se iludir sobre um futuro mais brando que nunca chegaria.

Se pudesse, contaria a eles que não sair dali também era saudade.

Imagem © Layers

carladias.com.br

 

Comentários

Nadia Coldebella disse…
As vezes, pra ficar, se dispensa mais esforço do que ir... As vezes ficar não é se conformar, as vezes ir é fugir...
Mas as vezes saber menos é libertador.
Texto instigador como sempre.
Milton Rezende disse…
muito bom, sutil e contundente
Jander Minesso disse…
Me encheu os zoinho de lágrimas. Sempre me impressionei com tudo o que você escreve, mas nos últimos tempos tenho me impressionado com aquilo que você deixa por escrever. Mais um texto doído e lindo.
Zoraya Cesar disse…
Que tolice a minha, voltei a ler a Carla num domingo à noite. Que história arrepiante de triste. E como tá bem escrita! E como vc consegue colocar beleza na tristeza. Essa última frase sua é primorosa. Mais um personagem preso em si mesmo. Um livro só c essas suas histórias seria o máximo!

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