Humilhações digitais >>> Nádia Coldebella



Se tem uma coisa que me perturba nessa era digital é o fato de que nem podemos pagar mico em paz. Não que eu queira dar dinheiro pra macaco, mas prefiro que cada um meta a mão na sua própria cumbuca e deixe a minha quieta.


É que, hoje em dia, pisar na bola pode encher a timeline de algum sujeitinho. Ele ainda receberá um retorno bem substancial em curtidas e moedinhas. A regra é simples: quanto mais humilhante a pisada de bola que você der, mais tempo o macaco do vizinho ficará instalado no seu galho.


Então, não importa muito se você é um mico-leão-dourado, orangotango, chimpanzé, gorila ou qualquer outro bípede parente do homosapiens. Em algum momento, uma camerazinha de algum celular de algum bicho esperto virará para você - ou contra você. E o pior de tudo é que o inimigo pode estar dentro da sua casa. E terá acesso a um dos seus momentos mais deploráveis. 


Os tempos atuais são muito desonestos, na verdade.


No meu tempo, quando um mico era pago, a dívida acabava. As pessoas riam da sua cara, apontavam o dedo e te apelidavam de forma humilhante. Provavelmente o apelido ficaria até o fim da adolescência, talvez você até o levasse para a vida adulta, e ele seria, para você, a lembrança do seu momento mais ultrajante. Mas seria a sua lembrança, porque, para os outros, logo tudo era esquecido, já que o bom macaco está bastante interessado em ver outros rabos também, porque a ocasião faz o ladrão. Humilhante, mas ético. 


Hoje em dia, tudo fica guardado para a posteridade. A gente não pode tropeçar, errar o cálculo da vaga de estacionamento, acordar com o cabelo parecendo que participou de uma sessão de eletrochoque, fazer algum som estranho num momento incoerente, que é questão de tempo para acabar virando gif do whatsapp. E você ficará enclausurado nesse zoológico digital, sujeito a risos, chacotas e a se tornar a alegria dos sádicos loucos por humor insano.


Mas não é só isso. 


Se você virar um gif, você será resgatado de tempos em tempos, relembrado por milhões. Será como se seu opróbrio tivesse acontecido hoje. Sua humilhação será cíclica, interminável e deplorável. Um verdadeiro inferno na terra. Você será um meme.


É nesse momento que me torno ameaçadora e deixo um aviso aos fazedores de memes de plantão:  macaco velho não trepa em galho seco, pois quem com ferro fere com ferro será ferido.


Se hoje o meme é meu, amanhã será seu. A humilhação na web não escolhe suas vítimas, amiguinho. Ela é aleatória, democrática e implacável. Qualquer um é público-alvo.


É dando que se recebe e eu espero rir por último, comendo meu frio prato da vingança pelas beiradinhas, enquanto te filmo desafinando em algum karaokê ou falando alguma besteira em rede nacional.


Aqui se faz, aqui se paga, coleguinha.


Comentários

Zoraya Cesar disse…
"Os tempos atuais são muito desonestos, na verdade." Total.

haha, Nádia, me pareceu mais q vc está se prevenindo de um ataque zombeteiro que irá para a posteridade, ameaçando os possíveis perpetradores do crime. Mas nem adianta, se um dia dividirmos quarto de hotel e vc acordar com cabelo de eletrochoque vou fotografar sim kkkk

Mentira. Se tem duas coisas q respeito são: minha sócia de carro e pá e a fragilidade alheia.

Acho um absurdo esses tempos irresponsáveis em que as pessoas viralizam a humilhação alheia, fazem selfies com vítimas de acidente, postam a desdita alheia. Tenho desprezo por essas pessoas e essa época. Muta gente de ego frágil já se matou ou nao se recuperou depois de ser viralizado nas mídias sociais. Ou antissociais.

Outro texto da Countess que faz rir e pensar. E já sabe, se alguém fizer isso com vc, me chama. A chave tá na mão e a pá tá na mala do carro.
Jander Minesso disse…
A história da camerazinha me fez perceber que “para” e “contra” podem ser sinônimos. Belo conto de horror contemporâneo, Nádia.
Anônimo disse…
Nádia, se o finado Milan Kundera tivesse tratado do tema "memes", o texto sairia parecido ao seu. (Não sei se ele tratou. Se alguém conhecer tal texto, apresente) André Ferrer aqui
Ana Raja disse…
O horror dos nossos tempos!
Albir disse…
Perfeito, Nádia! A proteção ao mico nosso de cada dia é parte do direito sagrado à intimidade. Mas não há muito o que fazer nestes tempos. Acompanho você, rogando para os invasores a praga de uma humilhação maior.
Nadia Coldebella disse…
A justiça é cega, mas a desgraça do meme chega pra todos. Valeu, colegas!

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