ESPELHO >> Carla Dias
Simplificar o cotidiano tem sido sua forma de lidar com desmandos. Se bate forte, ele respira fundo, analisa e depois tranca dentro de si. Há dias em que não consegue evitar e revisita seus aprisionados, remoça os conflitos e, sim, maldiz o do espelho.
Não nasceu delineado para se revelar com a facilidade de uma criança. Conhece muitos adultos com esse atributo e, dependendo da criatura, enerva-se ou encanta-se com elas. Ser apenas espectador de certos prazeres não o ofende. Na verdade, sente-se afortunado em alguns departamentos ao não sentir necessidade de experimentar o cobiçado pela maioria. Para ele, viver é bem mais simples e dispensa explicações.
Sempre apreciou desafios, não entende o motivo de este o aprisionar com tanta facilidade. Irrita-se com a situação, mas também lhe toca um desalento, pois sente como se negociasse com o irredutível, e, apesar de não permitir uma solução, oferecesse escolha para o estado de espírito ao aceitar o inevitável. Sente-se ultrajado, como se o universo risse da cara dele ao impor a dúvida a um adulto adepto da praticidade, um sintonizado com a intelectualidade, mesmo não compartilhada, afinal, para ele, existir sem conhecimento e arte é arder no inferno, um bem longe do criado por Dante.
Todos os dias, ele sai de casa e cumpre sua história. Alcança objetivos, comete erros, tentar consertá-los, nem sempre obtém sucesso. Deleita-se com belezas: árvores, carros e pessoas. Lamenta-se diante do desprezível: calçadas irregulares, contravenções e abandono. Todos os dias, ele volta para casa carregando o resultado de deleites controlados, feito medicamento tarja preta, e, depois do banho, os ralos cabelos ainda gotejando a água expelida pelo chuveiro, encara o outro.
Somente o do espelho tem acesso as suas confissões e o ajuda a calar devaneios desnecessários. Ele não pode contar a ninguém sobre a origem dos olhares de reprovação, das rugas de dúvida e dos esgares de tensão dele. Seria como materializar a fragilidade. É o único capaz de ler sua linguagem corporal coreografada por desesperos em processo de construção. Tudo isso mora quieto nele. Mas ali, o silente é o outro, um prisioneiro que ele consegue controlar e calar. O seu ouvinte condenado a não expressar opinião.
Mas e se eu fosse direto somente desta vez? Rasgasse a pele da dúvida e aceitasse o desafio?
Vez em quando, alguma dúvida desarranja a simetria das suas certezas, fazendo barulho em seu comedimento. É quando ele rumina sobre o que o outro diria se pudesse responder aquelas perguntas. Se habitariam tranquilamente o mesmo espaço e se entenderiam nos afazeres cotidianos. Como seria conviver com o do espelho sem observá-lo de frente, mantendo no lugar, com muito esforço, o transformado em silêncio.
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