O VIZINHO >>> Nádia Coldebella
Poderia ser dito que ele era um homem velho, beirando os setenta: alto, de pernas e braços finos que contrastavam com a barriga proeminente apontando para o céu. O rosto perdera boa parte da gordura e as bochechas transformaram-se em covas rasas que, com o resto dos seus anos, afundariam e ressaltariam as olheiras escuras e os olhos verdes argutos que pouco a pouco empalideciam por culpa da catarata. No topo da cabeça pontuda, as reentrâncias eram bem salientes e o pouco cabelo castanho há muito tornara-se cinza-nevoso, cada vez mais raro e fino. Apesar do ar cansado, ele mantinha a postura ereta que, acrescida do nariz aquilino e do sorriso amarelado, desenhado por próteses mal feitas, revelava a natureza de uma ave de rapina ainda desejosa de enfiar as garras na vítima indefesa.
Na maior parte do tempo estava desocupado. Costumava sentar-se em uma cadeira, em frente de casa, lançando olhares despudoradamente devassos para as moças e senhoras da vizinhança. Se alguém raivosamente o confrontasse, ele desfazia-se em inocência e mesuras ardilmente trabalhadas, durante anos, para esconder sua lascívia.
Se, por um infortúnio do destino, estivesse dentro de casa e houvesse alguma movimentação nos portões, ele logo saia e andava pela rua, de um lado a outro, para averiguar a novidade do momento. Tratava de permanecer parte significativa do dia em frente às janelas das vizinhas, que afrontosamente fechavam as cortinas para impedi-lo de ver sua intimidade. Algumas moradoras ainda o cumprimentavam por educação, mas outras simplesmente o ignoravam, aversas a invasão que sentiam.
Ele acreditava ter a sorte de sua esposa ser uma mulher piedosa. Ela era baixinha e de olhar feroz. Há muito sem viço e beleza, seu corpo se curvara sob o peso do tempo, dos partos, da vida dura e das palavras azedas do marido rabugento. Nas terças e quintas, ela recebia em sua casa mulheres caridosamente católicas, que rezavam o terço e cantavam desafinadamente, pedindo a Deus misericórdia para as almas perdidas. Nesses momentos, o homem se entregava à oração, não sem antes dar uma conferida nas pernas, peitos e bundas das mulheres que vinham para desfiar o rosário.
Quarta era dia de missa na igreja do bairro. Às seis da tarde, de banho tomado e coberto de perfume barato, ele sentava-se em frente à casa, para observar as mulheres e as moças saindo para a caminhada ou chegando do trabalho. Uma vitrine de carnes, ele pensava, pousando a mão sobre o próprio órgão genital. Ele o acariciava avidamente durante a passagem do mulherio, enquanto mordia os lábios com volúpia. Mas o deleite durava pouco, a esposa dava um grito e ele rapidamente se recompunha e entrava para vestir a roupa da missa.
Uniformizava-se com uma camiseta branca, que trazia impressa a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Cabelos alinhados, a melhor calça, sapatênis nos pés, era hora de usar o olhar mais piedoso e católico que encontrasse. Faltando quinze minutos, saiam de casa, a esposa três metros na frente, ele atrás, andando languidamente. Por uma hora, rezariam pelos pecados da humanidade, pelas pessoas sem coração, por todas as mulheres de vida fácil e para que a piedade divina fosse estendida àqueles que colocavam em risco os homens de bem e a unidade da tradicional família brasileira.
Naquela quarta, em especial, ele voltou catolicamente às nove horas da noite e, oportunamente, percebeu a vizinha da casa ao lado no jardim. A noite estava calorenta e abafada, o céu nublado e sem lua. A mulher, na casa dos cinquenta e tantos, mas ainda bem provida de corpo, vestia uma camiseta larga e um shorts até os joelhos. Preparava-se para molhar as plantas e jogar uma água na parede da casa, a fim de baixar um pouco a temperatura, para que sua mãe, idosa, pudesse dormir melhor.
O homem entrou com a esposa e logo todas as luzes apagaram-se. Então ele saiu, furtivamente e ainda vestido com a roupa da missa. Encoberto pela escuridão, colocou-se junto ao muro, de forma que pudesse ver sem ser visto. Logo a devassidão apossou-se de seu rosto e aquela mulher madura se tornou, para ele, a coquete de seus sonhos de juventude.
A patética cena, porém, era observada pelos vizinhos da frente, através de uma fresta da cortina. Há algum tempo desacreditada, a mulher sentia-se incomodada pela impertinência do velho e insistira para que o esposo permanecesse disfarçadamente junto à janela nas noites de quarta-feira. Agora, enquanto o marido bradava de raiva, ela sentia pena e desprezo.
É verdade que o velho era uma ave de rapina, mas uma ave de rapina que há muito perdera a habilidade de caça. A esposa piedosa confidenciara, aliviada, a uma das mulheres do grupo de reza, que se encarregou de contar a toda a vizinhança: há anos o vizinho não comparecia no santo leito do casal.
Do outro lado da rua, o velho se contorcia. Enquanto sua visão deleitava-se com os dotes decentemente cobertos da vizinha, suas mãos procuravam a intimidade do próprio corpo, na tentativa inútil e desesperada de reacender o fogo, há muito exterminado.
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Imagem: O Velho Pescador. Pintura de Tivadar Kosztka Csontváry, 1902. Esta pintura tem uma peculiaridade: Ao colocar um espelho exatamente no centro da pintura, a imagem refletida pode ser a de Deus, ou o Diabo, dependendo de qual lado o espelho é colocado. ... - Veja mais aqui.
Comentários
L.Killer: sim, tentei ser o mais fiel possível aos fatos e imagens. Fica a vontade para usar e abusar dessa calamidade.
Albir: Buu. Aguarde!
Carlinha:danado de bom é elogio seu.
Grande abraço a todos e obrigada por comentar!