DOIS ATOS >> Ana Raja


Quem fui antes se comparado com quem sou agora? A nostalgia refletida na janela panorâmica da novidade?

Danço pelo salão, meus passos e rodopios acompanham a animação da banda, a culpada por afrontar o meu coração. Nesse momento, a mão que abarca a minha cintura não é a única, muito menos a essencial; enfim, a escolha. Sou capaz de inventar coreografias, mudar ritmos e inspirar arritmias com somente um rufar de tambores.

Outros tempos rondam os meus cinquenta anos de idade. Cabelos soltos, e desprovida de batom e rímel, atravesso a rua sabendo o endereço. Se em algum semáforo meus pés precisarem de pausa, me acomodarei. Quem está à minha espera, talvez tenha que continuar a me esperar. Não terei remorso ao preferir a ausência. Os desassossegos que se colocarem no caminho poderão mudar o meu trajeto. 

A música que escuto ao acordar remete a dois momentos que se encaixam deleitosamente em minha vida. Prefiro o segundo, o que se reflete na minha melhor fase, a mais alegre e frenética. Depois dos anos contabilizados, e sempre pautados na razão, me permito a liberdade de viver também nos intervalos. Aqueles que coabitam em tais intervalos alcançam um certo nirvana, mas isso é intervenção para o segundo ato. 

Convidada para esse baile eu fui. 

Vou de cores combinando, ainda que obedeçam a minha miopia, os cabelos, deixo pontas soltas ao lado do rosto. Da pouca maquiagem: um brilho roseado. Da altura embriagante: saltos baixos; giro muito mais com eles. Vestidos, saias, calças, macacões, blusas e casacos. Abro o armário de madeira envernizada e escolho a nudez.

Tenho preferido a nudez.


Imagem © Rubén Raúl Pérez Signorelli por Pixabay

anaraja.com.br

Comentários

Nadia Coldebella disse…
A maturidade não aceita qqr coisa, né? Há uma certa liberdade, que se bem usada, deixa a vida mais autêntica.
Texto muito bacana!
Zoraya Cesar disse…
que texto SHOWWWWWWWW. Além de muito bem escrito, bem resolvido, bem tudo!
Se houvesse realmente justiça nesse mundo, essa sabedoria do preferir a nudez e de escolher "a liberdade de viver também nos intervalos" nos viria bem antes dos 50. Enfim, antes tarde do q nunca e q possamos todas usufruir muito desse novo modo de vida. Viver também nos intervalos foi apenas uma de várias das frases marcantes e profundas.
Albir disse…
Que beleza, Ana!
Li várias vezes.
Liberdade ainda que tardia, dirão os mineiros.
Luciana Giacomazzo disse…
Amei demais 👏🏼👏🏼👏🏼❤️
Carla Dias disse…
Muito bom quando um texto nos leva a refletir profundamente sobre a nossa vida. a liberdade de ser também tem a ver com a idade, com os rótulos que grudamos nelas, e com aqueles que descartamos, porque somos mais do que rótulos.

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