A CASA DE HOMERO >> Carla Dias


O pai lhe deu nome digno: Homero. Professores vivem a lhe perguntar sobre a relação com o grego, mas a resposta é simples. Sr. Homero era vizinho da família. Solitário convicto e apreciador dos livros, ele sim conhecia o poeta grego e muitas coisas e pessoas e assuntos que o pai de Homero, o brasileiro, jamais conhecerá.

Sr. Homero morreu dormindo, sentado na cadeira de balanço da varanda, um livro despencado da mão esquerda e um copo de uísque vazio, da direita; os óculos tortos, amparados por seu nariz alongado. Morreu na noite de terça-feira de Carnaval, o que foi constatado quando a polícia falou com o pai de Homero vivo, que comentou ter cumprimentado o vizinho ao chegar de um passeio, com um aceno, perto da hora do jantar. No entanto, todos souberam do ocorrido somente depois das 14h da quarta-feira de cinzas, quando a cidade voltou a funcionar e o jardineiro do Sr. Homero apareceu por lá. 

Não teve grito, mas desespero. O jardineiro, sem saber o que fazer, chamou o pai dele, que correu até à casa do vizinho e confirmou: Homero terminara a sua odisseia.

Comovido com a forma como o vizinho morrera, atormentado com a beleza da cena que a morte criara na varanda, injuriado por saber tão pouco sobre ele e nunca tê-lo convidado para um jantar que fosse, batizou com o nome dele o único filho, que chegou ao mundo duas semanas depois do ocorrido. 

Sr. Homero se tornou a obsessão do vizinho. Vê-lo na posição da morte foi como conhecer a própria; foi como se ela tivesse observado a nudez da existência dele. Algo desandou na alma do homem. O filho cresceu sem entender essa conexão, que levou seu pai a comprar a casa do Sr. Homero só para mantê-la vazia e a colocar nele o nome de alguém que admirava, mas sem ideia do motivo para tal admiração.

Os colegas de escola repetiam as histórias que os pais contavam, sempre com adaptações. A preferida do menino era que a casa do Sr. Homero sofria de mal-assombramento, porque sentia falta da solidão dele. Casa não morre de solidão, mas sofre com ela. Suporta a solidão de quem a habita, mas não a própria. Não à toa, ela faz tudo para ranger e chamar a atenção das pessoas.

Desde que colocou os olhos naquela casa, sendo capaz de percebê-la como o lar de alguém que nunca conheceu, Homero se interessou por ela. O pai mantinha as chaves escondidas, mas ele sabia onde. O homem nunca foi bom de esconder coisas, por isso ele também sabia que o pai tinha era medo da morte. Não se interessava pelo vizinho, na verdade, pouco sabia sobre ele, como todos os que moravam no bairro. A morte ter encantado o olhar dele com aquela cena era o que o atormentava. Como pôde encontrar beleza em uma tragédia?

Não foi por Homero, o poeta, mas sim por Homero, o vizinho. Há alguns anos, quando deseja ficar sozinho com os próprios pensamentos, Homero pega as chaves da casa do vizinho e entra em sua solidão. Uma gaveta velha arremessada por algum implicante, abriu um olho no teto da casa. O menino se deita bem debaixo dele para namorar o céu. Nas noites de terça-feira de Carnaval, ele agradece ao Sr. Homero por recebê-lo em seu lar.


Image © Peter H por Pixabay

carladias.com

 


Comentários

Ana Raja disse…
Carla,quanta beleza em sua escrita. Estive presente nessa casa enquanto lia o encantamento das palavras.
Nadia Coldebella disse…
Carlinha! Que conto lindo! Tem poesia na sua prosa. Adorei essa imagem da casa solitária, da criança olhando o seu através do buraco e da morte tão cheia de beleza...
Coisa linda!
Albir disse…
Carla, que lindeza!
Com você é assim, a gente sabe que a beleza vem, mas se surpreende.
Carla Dias disse…
Ana, que bom que quis entrar e conhecer a casa.

Nádia, a poesia é par da minha prosa. Não acho que vão se separar algum dia.

Albir, que gentileza nas suas palavras. Obrigada pelo aconchego.

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