CUIDADO COM AS RESOLUÇÕES DE FINAL DE ANO. ELAS PODEM SE REALIZAR >> Zoraya Cesar
Que maravilha, pensou, ano novo livre de pandemia. Pretendia arrasar nas comemorações como nunca fizera na vida. Sempre desprezara qualquer tipo de confraternização; isolava-se em casa e, na virada do ano, virava-se na cama e dormia.
Particularmente, nada vejo de
errado nisso, é uma escolha como qualquer outra. Mas talvez o isolamento forçado
e o peso dos anos tenham mexido com suas convicções antissociais. Deixemos, no
entanto, de psicologia barata e voltemos à épica passagem de ano de Ermelindo.
Antes, porém, uma pequena pérola de sabedoria: cuidado com o que deseja, pois
você pode receber o que pediu.
E o que ele desejava? Ter tudo o
que não tinha – sorte na vida, um amor pra chamar de seu – e ser o que nunca
fora: um homem descolado, cool, destemido. Achava que se mostrasse sua face
selvagem e primitiva na virada do ano, transformar-se-ia em um cowboy sedutor, irresistível, perseguido pelas mulheres e invejado pelos outros machos da espécie.
Primeiro ato – quando a sorte bate
à sua porta e você bate a porta na cara da sorte
Além disso, que mané festa de
apartamento o quê! Ia pra rua, caçar aventuras, ver os fogos in locu, pular as
ondas do mar, pegar mulher bonita. Ia ficar bêbado e audaz. Um novo ano.
Um novo homem.
Segundo ato – o caçador inexperiente
quer caçar rinocerontes com espingarda de chumbinho
Escolheu uma roupa especial para a ocasião: uma bermuda branca, branquinha - não tão
branca, branquinha quanto seus cambitos descarnados, porém - e um blusão cafona de flores
vermelhas, pois vermelho é a cor da ousadia. Enfiou a pochete debaixo da
bermuda (Ermelindo era um conservador, nunca deixou de usar pochetes,
estivessem ou não na moda) e calçou sandálias franciscanas tão surradas quanto o hábito de um monge andarilho. Com aquela sua cara e jeito de panaca, feio e mal
ajambrado, parecia mais um ET que um sujeito esperto e safo.
Agora, a segunda fase do plano de
liberdade ainda que tardia: encher a cara e perder as estribeiras. Mulheres
gostam de um homem que não tem medo do álcool. Ademais, sendo ele tímido e
desacostumado à vida social, só mesmo tomando um porre teria a coragem necessária
para ‘ir à vida’, fazer coisas outrora impensáveis e, com alguma sorte,
impublicáveis.
Ermelindo não tinha intimidade com
bebidas, mas sabia que misturar álcool com energéticos ‘dava onda’. E ele
estava a fim de fazer o bagulho ficar doido. Uma garrafa de espumante, pra ser
chique e brindar ao ano novo e à nova vida de homem audaz; uma lata de cerveja
e outra de energético, pra ser moderno.
Em pouco tempo seus sentidos foram se afastando da realidade. A mistura o deixara animado, vendo o mundo ao redor
com olhos coloridos - tudo era lindo, maravilhoso, tudo odara, joia rara, qualquer
coisa que se sonhara. Nem se dava conta que a praia era uma lata entupida de sardinhas
suadas, bêbadas e histéricas. No caminho para a beira d’água, um pisão o fez perder
uma das sandálias; alguém vomitou no seu pé; um esbarrão o fez derramar
espumante na roupa. Mas nada o
incomodava.
Terceiro ato – Let the games begin. May the force be with you, etc etc
O pescoço esticado para ver os fogos terminou por provocar um torcicolo e, após o término do espetáculo, Ermelindo levou quase 10 minutos para colocar a cabeça no lugar. A cabeça física, bem entendido, que a mental estava cada vez mais deslocada.
Tendo acabado com seu
espumante, pegou um oferecido para Iemanjá e ficou a vagar pela orla,
tropeçando em corpos bêbados e casais entrelaçados, alguns com a mão naquilo, outros com aquilo na mão. Deu-se conta de que ainda não concretizara uma de suas metas: envolver-se selvagemente com alguma beldade desconhecida. Sua primeira saída sem lenço nem documento haveria de ser memorável,
digna da inveja dos amigos, assunto para conversa de bar entre homens estilosos e machos que nem sua nova persona.
E foi à caça, arrojado e destemido.
As mulheres das quais tentava se aproximar, no entanto, afastavam-se rápida e
inalcançavelmente. Talvez um pouco assustadas com aquele sujeito descabelado, olhar esgazeado e
avermelhado, pescoço torto, fala engrolada, feio como a miséria, todo sujo e
fedendo e as pernas um tanto cambaias. Ou talvez elas não
estivesssem desesperadas ou bêbadas o suficiente.
Mas a orla era grande; a noite, uma
criança mal-educada; e, como dizia minha Avó, há sempre um chinelo doente para
um pé velho. Não, um chinelo de pé para um velho doente. Acho que também não é
isso. Ah, vocês me entenderam. O fato é que, aleluia, irmãos, teve uma que não se
afastou de Ermelindo, ao contrário, foi em sua direção.
Ele exultou. Que mulher! Mulherão! Uma
Valquíria dos mares, uma sereia perdida em busca do amor. Alta, quase sem
peitos, longos cabelos negros lisos de escova com formol balançando ao vento.
As pernas musculosas e finas desfilavam na areia, uma gisele
bundchen da beira-mar. Na parca luminosidade da praia, Ermelindo vislumbrou
lábios carnudos e uma pele de pêssego.
A mulher chegou chegando, beijando
Ermelindo com a voracidade de um desentupidor de pia, agarrando-o com furor, o
desejo queimando seus corpos. Perderam a noção e o equilíbrio e, caídos na
areia, se pegavam, sôfregos, tentando tirar a roupa um do outro.
Talvez o estado etílico de
Ermelindo estivesse começando a evaporar com o calor do esfrega-esfrega, pois
ele sentiu um estranho volume entre as pernas de sua musa. E, antes que pudesse
elaborar o significado desse achado, um tapão ao pé da orelha o
desconcerta totalmente, interrompendo o quase coito público.
Entre os tapas sem beijos que levava, viu que uma meia dúzia de travestis assistiam extasiados ao show de sexo gratuito e vibravam com o barraco armado pelo companheiro da mulher infiel. Ermelindo, atordoado, tentava inutilmente se defender dos gritos e dos tapas e sair correndo. Sorte que, antes que o companheiro ultrajado o deixasse largado e nu com a mão na pochete, a polícia chegou e passou o rodo.
Quarto ato – Disgrama pouca é
bobagem. Ou quando a sorte bate à sua porta, você bate a porta na cara da sorte
e a sorte bate a porta na sua cara de volta.
No cômputo geral, Ermelindo até que
cumpriu seus propósitos: bebeu feito um gambá, deu em cima de mulheres, beijou
uma desconhecida, quase tirou a teia da genitália adormecida e, ao final, viveu
uma aventura. Isso, com boa vontade.
Porque, com má vontade, foi um desastre.
O torcicolo, as orelhas, o rosto doíam com pontadas lancinantes.
As costas também, pois, depois de vomitar a alma na delegacia, ainda teve que
limpar tudo, pois o delegado foi bem veemente ao dizer que policial não tava
ali pra limpar sujeira de bêbado.
Foram todos liberados depois de uma
longa, longuíssima hora, tempo mais que suficiente para Ermelindo perceber duas
coisas: o volume estranho que sentira entre as pernas de sua musa não era
estranho, mas perfeitamente natural ao corpo de um travesti; e que sua musa era
feia de dar nó em pingo d’água, os dentes amarelados, o gogó proeminente e os
pés tamanho lancha. Ermelindo queria encher a cara de álcool, mas teve de se
contentar em beber de suas próprias lágrimas de vergonha e dor. Fora o pavor de alguém ter filmado tudo e o infeliz acontecimento parar na internet.
Voltou para casa dolorido, descalço, faminto,
roto e esfarrapado, fedido e infeliz. Para piorar, a ressaca lhe deixara de presente
uma enxaqueca de ver estrelinhas.
Devia ter ficado dormindo. Ou melhor,
devia ter aceitado o convite da vizinha. Afinal, ela não era nenhuma Scarlet
Johanson, mas pelo menos era mulher de verdade e sempre demonstrara interesse
nele. Vou dar uma chance, pensou. Melhor uma namorada feia que nenhuma.
Sua ansiedade foi tão grande em
tentar remendar o estrago da virada de ano com uma nota promissora, que nem se
preocupou em tomar um banho, trocar a roupa, fazer-se apresentável. Afinal, de certa forma, estava fazendo um favor à vizinha, feinha, coitada, não arranjaria
nada melhor que ele.
Ainda havia barulho de pessoas
conversando baixo, algumas risadas discretas, cheiro de café fresco. A festa
deve ter sido boa, remoeu-se, invejoso. Mas da próxima vez estarei aqui, como
anfitrião. Nunca mais passarei por sufoco.
Bateu.
Alguns intermináveis segundos
depois a vizinha abriu parcialmente a porta, presa pela corrente de segurança. Estava
cheia de purpurina, os olhos brilhantes, um sorriso radiante. Cumprimentou
Ermelindo, perguntou como havia passado o ano. Bem, bem, respondeu ele, um
pouco contrafeito. Não esperava essa recepção distante. Esperava porta
escancarada, um convite caloroso para entrar, uma tentativa de sedução da parte
dela que ele, condescendente, aceitaria...
Ah, ela deve estar ‘fazendo doce’, para
se vingar de todas as esnobadas que dei nela, por isso ainda não me convidou a
entrar, concluiu, em seu delírio narcisista. Mas vou insistir, o cheiro de café
tá bom demais e quero começar o ano comprometido em um relacionamento.
Antes que pudesse abrir a boca e se
autoconvidar, um homem surgiu atrás da vizinha. Era alto, forte, moreno, de
queixo quadrado e olhos largos. Deu um bom dia seco e duro, numa voz sutilmente ameaçadora. Ermelindo
sentiu calafrios. Por mais mané que seja, o sujeito percebe quando um galo alfa marca o terreiro.
Esse é Rondor, amigo do meu primo. É
a primeira vez que ele vem à minha festa; começamos a namorar hoje, ela
explicou caridosamente, para ver se o vizinho entendia a deixa e zunia dali. (Bastardo inglório cretino. Durante anos ele só me desprezou. E ainda tem o
desplante de aparecer saído da boca da sarjeta, como se minha casa fosse uma
lixeira. Que sorte a minha!, ela suspirou. Ainda bem que nunca deu certo entre
nós, ou eu não teria passado a virada de ano mais feliz da minha vida.)
Apresentações feitas, Rondor pediu
licença e, sem nem esperar pela resposta, fechou a porta na cara de Ermelindo.
Quinto ato: se conselho fosse bom...
eu dava, porque não sou mercenária
Eu poderia terminar essa história
(que eu soube por fontes fidedignas) com uns conselhos sábios e moralistas, mas
quem sou eu?
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Outros contos de final de ano. Todos tão edificantes e positivos quanto esse (hehehe)
Comentários
Obrigado, Zoraya, por mais esse texto!
Que 2023 seja marcado por muitas crônicas suas!