TUDO VERDADE >> JANDER MINESSO


Tive três profissões na vida. Quatro, se contar que ganhei algum dinheiro tocando contrabaixo em lugares pouco nobres da noite paulistana. Mas comecei a trabalhar de facto como professor de inglês. Depois, virei editor de vídeo. E hoje, escrevo programas de televisão. É uma carreira que alimenta a vaidade de qualquer um, mas o cotidiano é bem menos mágico do que parece. Ainda mais se levarmos em conta que, nos últimos anos, tenho me especializado em reality shows — aqueles programas que você detesta, ninguém assiste e todo mundo vê.

O reality show é o futebol de quem não gosta de futebol. Tal qual o esporte bretão, ele reúne jogadores de habilidade questionável e torcidas que demonstram sua paixão de um jeito quase patológico. Além do excesso de tempo livre, o fã de realities também tem um conceito de justiça bastante estreito: justo é o que beneficia o jogador para o qual ele torce. Todo o resto é manipulação, maracutaia e trambique. E quando algo não acontece do jeito que ele queria, adivinha quem fica com a bunda na janela, apanhando nas redes sociais feito um Judas no Sábado de Aleluia? Pois é.

Mas no fundo, acho que isso não me magoa. Não muito, pelo menos. Nós, brasileiros, somos enganados com uma frequência dolorosa. O Lula enganou a gente. O Bolsonaro também. A seleção de futebol masculino tem nos enganado sistematicamente, de quatro em quatro anos, por pelo menos duas décadas. O tempo todo tem alguém nos passando para trás. Claro que a gente precisa de uma válvula de escape. Um bode expiatório. Um lugar seguro para extravasar até a última gota de frustração. Esse é o papel social do reality show: criar um espaço para as pessoas descontarem toda a raiva e a decepção que elas sentem delas, do próximo e do todo. Isso me dá um certo senso do dever, para ser sincero.

Inclusive, há quem diga que todo reality faz referência ao 1984. Eu concordo com o fato, mas discordo do motivo. Defensores da teoria afirmam que nossas novelas da vida real são a aplicação prática do conceito do Grande Irmão: um ditador chato, que não tem nada melhor para fazer e fica metendo o bedelho na vida alheia vinte e quatro horas por dia. Sem dúvida, todo reality show tem um pouco disso. Mas acredito que a melhor ideia que esse tipo de programa pega do livro do Orwell são os Dois Minutos de Ódio. O reality oferece uma coleção de pessoas para o público antagonizar, detestar e cancelar. E o melhor: o catálogo se recicla a cada temporada. Claro que as pessoas também elegem seus favoritos: todo mundo quer escolher o cavalo vencedor para sentir que tomou alguma decisão certa na vida. Mas o que ninguém admite é que os realities são lugares confortáveis e quentinhos para você sentir raiva. Não estou dizendo que isso é bonito. O ódio não é bonito. Mas nem por isso ele é menos verdadeiro.

Acredito que, a essa altura, muita gente está pensando: “Beleza, entendi. Mas e aí? É manipulado ou não?” Em defesa da classe, posso dizer que já fiz mais de dez temporadas desse tipo de programa. E nunca vi sequer um membro da equipe sugerir que algum participante falasse algo ou agisse de determinada maneira. Sei que algumas cenas podem parecer absurdas quando assistimos, mas o ser humano é absurdo. Um professor meu costumava dizer que somos um bicho deplorável, coberto por uma camada de verniz civilizatório bem fina. E quando você fica trancado no mesmo lugar por meses, longe da sua família, dos amigos e sem uma Netflix para passar o tempo, o verniz trinca rapidinho.

Achei que teria mais a dizer, mas sinto que o assunto já está acabando. E apesar de breve, juro que só coloquei aqui fatos e opiniões honestas. Mas talvez eu esteja te enrolando. Pode ser que eu esteja manipulando sua mente, te fazendo acreditar em mais uma mentira. Existe até a chance de que alguma eminência parda da televisão tenha me pedido para escrever este texto, usando minha magra credibilidade literária para empurrar meias verdades goela abaixo dos outros. De verdade? Vou deixar a dúvida no ar, para você dormir com esse barulho. Não me odeie.

Imagem: Pixabay

Comentários

Cleber disse…
Sucintamente: né?
Hermano disse…
Seu texto diz muito, inclusive verdades.
Juliana Carqueijo disse…
Em 20 anos se tv, conheci muita gente legal, mas Jander: vc é genial.
Filha disse…
Quando o pai fala, a gente acredita.
Anônimo disse…
Ah-hãããããã! Então, você está metido nisso! André Ferrer aqui.
Zoraya Cesar disse…
aqueles programas que você detesta, ninguém assiste e todo mundo vê. HAHAHAAH, pois olhe, tenho o orgulho besta e inútil de dizer q NUNCA assisti a realities ou shows de auditório.

Agora, concordo total e completamente com seu professor. Somos deploráveis e pequenos.

E, se vc nos está enganando ou não, pouco importa. O q importa é q foi um texto ótimo!
Albir disse…
Não se preocupe, Grande Irmão, compreendemos os seus desígnios. Sabemos que o objetivo é o bem comum.
A propósito, vou já completar os exercícios diante da teletela.
Soraya Jordão disse…
Concordo com tudo que você expôs e ainda assim, assito aos realities, assumidamente.

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