RECONHECER O FIM >> Carla Dias


Dói feito rasgo de sulfite no dedo a esticar a duração da dor. Parece que o incômodo não terá fim. O mundo acabando – tem certeza: será daqui a poucos suspiros – e ele devaneando sobre notas – musicais e de rodapé; lugares – salas de estar e continentes.

O pai jurou que ele nasceu para irritar acomodados. Pode ter sido presciência do velho acostumado a perder o olhar em horizontes, mas nunca deixar a varanda da velha casa construída por ele do chão aos dois andares. Para o pai, ali cabia o mundo inteiro, o universo vivia nos cômodos daquele lar. O filho nasceu insurgente, costumava dizer ao flagrá-lo aprontando fora dos limites do quintal. Mas repetia, sempre na mesma cadência, a voz grave e destemida, que o rebento fazia de conta que sabia do mundo, e, às vezes, o sabia mesmo. 

Em outras, escolhia não saber.

Em algum momento, reconheceu o ponto no qual o doer amenizava. O pai lamentaria, tem consciência disso, saber que o filho ainda incomoda acomodados, mas se adaptou à segurança do conhecido. Raramente se envereda pelo mundo.

Usa o passado para acalmar consumição ao folhear na memória as cenas preferidas, entre elas a da avó lhe ensinando a dizer e pensar diferentes: palavras e conceitos. O pai a culpava pelo filho ser dado às rebeldias, mas ecoava na voz dele um orgulho travestido de advertência. A avó era pessoa de olhar adiante, de sabedoria indiscreta. Dizia verdades de cortar certezas, refinar percepções. Agredia, vez ou outra, a estabilidade do outro. Foi assim que ele aprendeu que ser dói. 

Dói feito novidade boa afogada na espera de aparecer alguém com quem possa compartilhá-la, mas isso ele aprendeu (na verdade, apenas se convenceu de ter aprendido) a resolver definindo tempo: desemboca a novidade na rotina após 24 horas de solidão. Perde a dita entre os afazeres mais banais, apesar de confortantes: tirar o pó da coleção de LPs, tentar consertar o toca-discos de trazer som de passado, revisitar fotografias de acontecidos: saudade e desapego, e solicitar, no restaurante da esquina de sua casa, alimentos de ajudá-lo a se lembrar de afeto.

Compreende que o mundo está para acabar, deve acontecer em poucos revides. O velho pai advertiu, mas ele não prestou atenção àquela importância: reconhecer o fim não pode atrapalhar começos. 


Imagem © Manuel Angel EgeaPixabay

carladias.com.br

Comentários

Zoraya Cesar disse…
"reconhecer o fim não pode atrapalhar começos." Um fechamento maravilhoso para um texto maravilhoso.
Jander Minesso disse…
As verdades que cortam certezas são as melhores, Carlandreia. Mas tem muita certeza de diamante nessa vida, né? Nem risca de tão dura.
Albir disse…
"Consertar o toca-discos e tirar o pó dos LPs", siga por aí nesse diálogo com o Sérgio Geia, que está sacudindo a poeira.

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