SOL SOMBRIO - OS IRMÃOS - PARTE I >>> Nádia Coldebella
A rua estava molhada depois da chuva da madrugada. Uma fina névoa se espalhava pela atmosfera, deixando tudo com um aspecto ainda mais úmido e acinzentado. A escuridão acrescentava mais um tom às sombras densas das velhas construções, um amontoado de casas e prédios feitos de cimento e pedra, pichados pela mão de vândalos e enegrecidos pela poluição da cidade.
Algumas poças d'água refletiam a parca luz que ousava sair tímida pela fresta de alguma janela descuidadamente aberta. Se agitaram quando sapatos de couro negro, lustrosos e de bico fino, pisaram displicentes, manchando-as com um solado vermelho-sangue.
O homem que os calçava era muito alto e bastante forte. Apesar disso, seus passos eram leves e ele vagava despercebido sob o véu escuro da noite, parecendo não ser afetado porque qualquer réstia de luz. Sua pele, densa e escura como ébano emoldurava olhos enormes, brilhantes e muito negros, protegidos por longos cílios e sobrancelhas espessas. O rosto era quadrado, com traços marcados e lábios fartos que contornavam a boca com uma certa rigidez. Ele vestia calça e camisa pretas, feitas com um tecido muito requintado. Sobre a roupa, um sobretudo de couro preto e fosco, que descia até os joelhos.
Parou diante de uma velha porta de madeira podre, desbotada e gasta, cavocada por cupins. Nos buracos deixados, cresciam musgos esverdeados e algum tipo de bolor. Era uma porta humilde, mas um retrato em alta definição que denunciava o tempo nas tábuas carcomidas.
O homem pôs a mão de dedos longos e fortes sobre a maçaneta antiga e enferrujada, girando-a com cuidado, abrindo vagarosamente. A porta rangeu. Gemeu, na verdade, um gemido doente, lamuriento, de gente ferida e desesperançada que gritava orações pedindo para que o Insondável tivesse alguma misericórdia de quem por ela cruzasse.
Ele abaixou-se para passar pelo batente, mas não o suficiente. Tentou, em vão, segurar o caro chapéu panamá preto, que despencou para dentro de uma poça. Abaixou-se para pegar e, por alguns segundos, contemplou o próprio rosto projetado na água. Enigmático. Ergueu-se e entrou, procurando fechar a porta mais lentamente do que abrira, esperando não ouvir novamente o rangido que, agora, gritava mais alto.
O apelo da porta era martelo batendo em metal, ressoando dentro dele. Endireitou o corpo, chacoalhou a água do chapéu e o colocou na cabeça. Adentrara num pequeno hall, iluminado apenas por sete velas bem acomodadas num candelabro que parecia ser de cobre e que lançavam luzes bruxuleantes sobre as paredes brutas que, pintadas de cinza-sofrimento, deixavam aquele lugar ainda mais claustrofóbico.
Logo acima do candelabro, um espelho prateado ampliava o alcance da luz. Foi em frente dele que o homem postou-se para arrumar o chapéu e endireitar o colarinho da camisa. Pode ver refletido, atrás de si, na parede, um cabideiro antigo. Poderia ter deixado ali o sobretudo e o chapéu molhado se não tivesse resolvido continuar com eles.
Cortinas pesadas, escuras e imóveis como muralhas, separavam aquele cubículo do outro ambiente. Uma mão ossuda e de cor indefinida apareceu por um vão da cortina e separou uma da outra, deixando uma inesperada réstia de luz incandescente passar. Ele pode ouvir uma voz que parecia vir de dentro de um poço anunciá-lo com uma série de adjetivos que preferia não conhecer:
- Obscuro. Sombrio. Soturno. Caliginoso. Umbroso. Tetro. Aziago. Mofino, Lutuoso. Nefando. - a voz fez uma pausa dramática - O Negro.
Um silêncio veio em seguida, como se aquela voz esperasse uma resposta. Mas o homem negro não teve medo nem sentiu raiva. Sabia que era tudo parte do show. Só esperou.
- Entre - A voz afundara um pouco mais no poço.
Deu alguns passos e transpôs a cortina. A explosão de luz cegou seus olhos e ele precisou fechá-los. Pôs as mãos no bolso, relaxou os ombros e deixou-se ficar quieto por alguns minutos, para acostumar-se àquela luminosidade toda.
E quando acostumou-se, abriu os olhos.
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A iluminação estava em toda a parte, do teto ao chão, e havia sido disposta de maneira que as poucas sombras que se formavam por ali logo eram dissipadas. Paredes alvas e muito lisas, semelhante a vidros opacos, refletiam a luz para todos os lados daquele salão. O lugar parecia não ter início nem fim.
A parede moveu-se. Era um homem que, muito branco, havia se misturado a ela. Estava entediado e encostara-se ali, os olhos fitando o chão, observando seu próprio reflexo que parecia flutuar num céu branco de eternidade sem fim.
Seus ouvidos o avisaram que a porta havia sido aberta. O som de um martelo no metal ricocheteou nas paredes: a porta gritava, anunciando Um, a ser subjugado.
Por causa disso, pôs-se em alerta e andou rapidamente para o meio do salão. Os sapatos brancos de couro faziam plec-plec no piso, e, a cada passo arrastado, os solados eram levantados e gritavam vermelho-sangue, para logo depois pousarem e confundirem-se com o chão translúcido.
No centro de toda aquela etérea bruma, encontrava-se uma mesa de pedra branca. Sobre ela, um caderno de couro bruto e uma caneta-tinteiro. De um lado da mesa, uma cadeira de aço branco, sem qualquer ornamentação ou conforto; do outro, uma requintada cadeira de prata, cujo acento era de delicado couro branco. Sob a mesa, um denso tapete, também branco, que afundava a cada pisada do homem pálido. Ele posicionou-se de pé, atrás da cadeira cadeira de prata, e pousou, com certa dramaticidade, a mão cristalina sobre seu encosto. As veias azuladas estalavam sob a pele diáfana e ele ficou ali, observando o movimento do próprio sangue.
Era um homem muito alto e bastante forte. Vestia uma calça e uma blusa brancas, feitas de um tecido ricamente trabalhado com o que pareciam ser pontos de luz. Sobre a roupa, depositava um sobretudo também branco, um tanto reluzente, cuja gola mantinha elevada. Os cabelos eram longos, finos e muito brancos, presos em um rabo de cavalo e ornados por um chapéu estilo panamá, também branco, de aparência muito cara, que confundia-se com o cabelo e com a pele alba.
Ele ouviu a porta ranger novamente, agora sendo fechada. Comprimiu os lábios e o movimento deixou a pele pálida ao redor da boca com uma coloração azulada. Uma fresta das cortinas já havia sido aberta e ele ouvia a voz do fundo do poço anunciando O Negro, que entrou e logo ficou inerte, de olhos fechados porque a luz o cegara.
Tentou manter uma aparência de calma, mas as mãos tremiam levemente. Respirou fundo e compôs-se o melhor que pode, cuidando para ajeitar o chapéu, para que ele não deixasse marcas em sua fronte albina. Ia movimentar-se quando outra voz, que parecia vir de dentro de um túmulo, agora também o anunciava.
- Alabastrino. Níveo. Alvo. Descorado. Desvanecido. Livoroso. Aerófano. Desbotado. Dessujado. Impoluto. - Pausa cenográfica. - O Branco.
Ele saiu detrás da cadeira e andou pesadamente em direção ao Negro, parando a sua frente, que acostumado-se com a luz, abriu os olhos.
- Morus - Disse O Branco.
- Hyalin - Disse O Negro.
Os olhos negros de Morus prescrutaram o vazio dos olhos azuis de Hyalin. Era um buraco oco o que via ali, sem sombras, só fantasmas. Hyalin deu um passo para traz, consciente de ter se perdido na assombrosa profundidade dos olhos negros de Morus e foi ódio o que Morus viu surgir na face transparente do Branco.
Os irmãos estufaram o peito e estenderam os fortes braços. Grandes asas romperam dos sobretudos, rasgando o couro e abrindo-se perigosamente. As de Morus, negras como noite sem lua, as de Hyalin luminescentes como sol do meio-dia.
Viam-se como num espelho. Mantiveram-se assim, quietos e em silêncio por alguns minutos, asas afiadas e cortantes apontadas para o coração um do outro.
Continua em 24/02
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Leia a parte dois aqui:
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