RÉQUIEM DO EXÍLIO >> Albir José Inácio da Silva
“’Não permita Deus que eu morra, sem que eu
volte para lá’
Canção do Exílio - Gonçalves Dias”
A busca pelo Eldorado, ou - baixando o nível de exigência - por algum lugar em que se consiga não morrer de fome e de assassinato, é provavelmente tão antiga quanto a humanidade.
Legiões de famintos se arriscam todos os dias em perigosas travessias para conseguir a sobrevivência dos seus. Muitos ficam pelo caminho, mas isso não arrefece o ânimo porque a alternativa seria morrer ou assistir a morte dos filhos sem fazer nada.
Em 2011 a família juntou os panos e partiu já com saudades, mas com esperança. O menino Moïse conhecia algumas coisas sobre o Brasil.
Por trezentos e cinquenta anos o Brasil recebeu seus antepassados, que chegaram acorrentados nos porões de navios chamados “tumbeiros” - de tumba mesmo! - porque grande parte dos negros morria durante a viagem. Os sobreviventes duravam pouco tempo, vítimas dos açoites, estupros e assassinatos. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos e o último a acabar com a escravidão no ocidente.
Mas o Brasil do século XXI é outro! – sonhava o menino. Não tem mais escravidão, é uma democracia, uma república, uma grande economia – um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. É signatário do pacto dos direitos civis, e tem um povo cordial e hospitaleiro.
Tão diferente do Congo! – pensava Moïse. O fim do tráfico negreiro não significou o fim da escravidão em seu país. A Bélgica substituiu a França, e o Rei Leopoldo II transformou o Congo em sua propriedade pessoal.
Esse foi um tempo de amputações de mãos e de enforcamentos dos filhos, se o pai não batesse a meta de diamantes. Tudo isso enquanto o sacerdote lia a bíblia e abençoava o carrasco, num arremedo de cristianismo que sempre persegue o explorado e justifica o opressor.
No século XX, guerras, revoluções, assassinatos, milícias e fome. Sempre a fome.
O Congo hoje está entre os países mais ricos da África, mas o seu povo é um dos mais pobres do mundo.
E a família chegou ao Brasil já com saudades, mas com esperança.
Logo perceberam que não havia empregos. Havia biscates, trabalho temporário, contrato flexível, carteira verde-amarela, autonomia, empreendedorismo - ou outro nome qualquer com que Belzebu tenha batizado a escravidão moderna!
Moïse estava acostumado a trabalhar duro. Aceitava todo tipo de serviço. Mesmo sem contratos, garantias, assinaturas, queria levar o dinheiro para casa. Depoimento de um amigo revela que ele recusou convite para um jantar porque não se sentiria bem comendo “aquelas coisas”, enquanto sua gente passava dificuldades.
E Moïse achou que tinha direito de cobrar pelos dias trabalhados. Era justo! Esse pouco dinheiro fazia falta na mesa pobre da família.
Mas é muita ousadia, um negro, imigrante, africano, fazer exigências a um empresário do bem!
Os três mensageiros do ódio, do racismo e da xenofobia são tão explorados quanto ele, mas ficam eufóricos com a oportunidade de agir como capitães do mato. Espancam outros miseráveis como se fossem senhores, ou feitores no Congo Belga.
Moïse bate três vezes no chão, mas o gesto de rendição não aplaca a fúria dos algozes.
Uma mulher alerta os guardas, mas eles não se metem nos “corretivos” aplicados por cidadãos de bem.
Moïse não teve tempo, mas sua família descobriu que não é só no Congo que matam seus filhos.
Descobriu que há senzalas em cada encosta de morro, e que grupos milicianos assolam as ruas e favelas, e se infiltram nos quartéis, repartições e palácios.
Descobriu que o racismo está em cada esquina. E Reis Leopoldos ainda sobem ao poder.
Comentários
Essa coisa, q nem sei q nome dar, sempre esteve por aqui, só q agora tem cara nova. O nosso estranhamento vem porque nem todo dia é noticiado, porque não se monstra as manchas dos " justos", porque esse tipo de coisa não acontece com "gente de bem"...
A gente estranha porque a coisa tem outro nome e outra cara, porque nem sempre é tão visível e nem sempre grita na cara do cidadão. Mas taí, sutil ou não, em cada esquina, das cidades grandes e pequenas, em cada instuicão, pública ou privada.
É uma raíz tão funda que arranca o nutriente direto do coração do homem. Eu arrisco a dizer q ela não escolhe só a cor, escolhe o que diz ser inferior, dependendo do lugar em que está. É bem mais ampla e se espalha como uma erva daninha resistente, assaltando e tomando qualquer lugar onde o terreno seja propício, onde o coração não vigia.
Teu texto é maravilhoso! Quem dera todos lessem!
" Preto é pele alvo."
Obrigada pelo texto, Albir.
" Preto é pele alvo."
Obrigada pelo texto, Albir