DE TANTO OLHAR OS LÍRIOS DO CAMPO >> André Ferrer

 

Lupicínio por Nássara
Érico Veríssimo nasceu em 1905. Meia década mais velho do que o meu avô paterno. Sua modéstia, com certeza, era tão honesta quanto a que eu tive a oportunidade de presumir, quando criança, nas vezes em que o meu avô cantou para quem estivesse no seu quintal. Sim. Os dois. O famoso escritor e o anônimo do meu avô: igualmente verdadeiros como somente pode ser alguém que se declara insatisfeito com o próprio livro. Como só alguém que apresenta, sem cerimônia, Lupicínio Rodrigues ao neto lactente. 

Lá estava eu, entre 75 e 78, conhecendo Felicidade, Esses moços, Vingança; todo o repertório do Lupi sem prolegômeno algum! Descobrindo que o fim de um dia chama-se sonho. Que, à sombra de um provedor infalível, ninguém evolui de verdade. Que Bichano, o gato, vivia preso entre o chão da casa e o chão verdadeiro. Que a desconhecida e misteriosa dor de um coração partido, cedo ou tarde, viria. Cruzar, sozinho, uma rua, também. E que Bichano, o gato, já não passava de uma pilha de ossos na escuridão sob os nossos pés. Morria-se eventualmente. 

 Algo excessivo, de fato, para tão jovem criatura! Um bebê impressionável; sobrevoado, àquela altura, pelos últimos pardais de mais um dia cheio de novidades. 

No quintal do meu avô, que parecia baixo - a cozinha lá em cima porque a velha casa tinha um daqueles porões de ventilação -, entrei em contato com o crânio e com a ampulheta. Uma janela aberta para o chiaroscuro da vida. Logo abaixo, as grades de ventilação separando o mundo externo de um breu permanente. Dois mundos que se igualavam enquanto anoitecia e as pedras do quintal esfriavam. Todo o Universo conhecido por mim naquela época. Lugar exíguo, mas que continha um tipo honesto de dureza. 

Érico, a seu tempo, abriu o seu romance de maior sucesso com uma declaração impossível para os padrões de hoje. Rejeitou o próprio filho enquanto ainda o apresentava! Então, eu fechei o livro e percebi que o movimento acontecia. O retorno de todas aquelas fulgurações! Ideias tão enérgicas e conflitantes quanto grãos de pó suspensos num facho de luz. Era o que me impedia de ficar parado. 

Em termos gerais, tudo anda difícil neste mundo. Atravessamos um histórico ponto de inflexão: está claro. É conhecido. Mas - de algum modo - muitos ainda ignoram que a inflexão acontece, primeiro, no íntimo. 

Bem, esta crônica não é sobre um livro. Nem sobre velhas canções. Nem a respeito de um gato que tinha o nome mais óbvio do mundo. Apenas aconteceu de libertar-me enquanto relia um romance. Ou melhor, o prefácio que o próprio autor fez; a história, de fato, nem tinha começado ainda; senti, então, o repentino e agradável solavanco da locomotiva, que retomava o seu movimento. 

A inação deixava de oprimir a minha vontade. Tudo porque eu havia tirado o memento mori do esconderijo que eu mesmo havia criado. Sim! Eventualmente, vive-se.

Comentários

Carla Dias disse…
Ah, André... Uma crônica que é um passeio por algumas das suas percepções. Obrigada pelo convite.
Zoraya Cesar disse…
"Tudo porque eu havia tirado o memento mori do esconderijo que eu mesmo havia criado. Sim! Eventualmente, vive-se."

Repito, desavergonhadamente, as palavras da Carla, destaco uma e apenas uma dentre as várias frases desse impecável texto e me despeço dizendo: que bom que vc voltou!
Albir disse…
Sim, André, as coisas se entrecruzam com facilidade quando nós permitimos. Muito bom!

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