DE TANTO OLHAR OS LÍRIOS DO CAMPO >> André Ferrer
Lupicínio por Nássara |
Lá estava eu, entre 75 e 78, conhecendo Felicidade, Esses moços, Vingança; todo o repertório do Lupi sem prolegômeno algum! Descobrindo que o fim de um dia chama-se sonho. Que, à sombra de um provedor infalível, ninguém evolui de verdade. Que Bichano, o gato, vivia preso entre o chão da casa e o chão verdadeiro. Que a desconhecida e misteriosa dor de um coração partido, cedo ou tarde, viria. Cruzar, sozinho, uma rua, também. E que Bichano, o gato, já não passava de uma pilha de ossos na escuridão sob os nossos pés. Morria-se eventualmente.
Algo excessivo, de fato, para tão jovem criatura! Um bebê impressionável; sobrevoado, àquela altura, pelos últimos pardais de mais um dia cheio de novidades.
No quintal do meu avô, que parecia baixo - a cozinha lá em cima porque a velha casa tinha um daqueles porões de ventilação -, entrei em contato com o crânio e com a ampulheta. Uma janela aberta para o chiaroscuro da vida. Logo abaixo, as grades de ventilação separando o mundo externo de um breu permanente. Dois mundos que se igualavam enquanto anoitecia e as pedras do quintal esfriavam. Todo o Universo conhecido por mim naquela época. Lugar exíguo, mas que continha um tipo honesto de dureza.
Érico, a seu tempo, abriu o seu romance de maior sucesso com uma declaração impossível para os padrões de hoje. Rejeitou o próprio filho enquanto ainda o apresentava! Então, eu fechei o livro e percebi que o movimento acontecia. O retorno de todas aquelas fulgurações! Ideias tão enérgicas e conflitantes quanto grãos de pó suspensos num facho de luz. Era o que me impedia de ficar parado.
Em termos gerais, tudo anda difícil neste mundo. Atravessamos um histórico ponto de inflexão: está claro. É conhecido. Mas - de algum modo - muitos ainda ignoram que a inflexão acontece, primeiro, no íntimo.
Bem, esta crônica não é sobre um livro. Nem sobre velhas canções. Nem a respeito de um gato que tinha o nome mais óbvio do mundo. Apenas aconteceu de libertar-me enquanto relia um romance. Ou melhor, o prefácio que o próprio autor fez; a história, de fato, nem tinha começado ainda; senti, então, o repentino e agradável solavanco da locomotiva, que retomava o seu movimento.
A inação deixava de oprimir a minha vontade. Tudo porque eu havia tirado o memento mori do esconderijo que eu mesmo havia criado. Sim! Eventualmente, vive-se.
Comentários
Repito, desavergonhadamente, as palavras da Carla, destaco uma e apenas uma dentre as várias frases desse impecável texto e me despeço dizendo: que bom que vc voltou!