PERDE-SE NELAS >> Carla Dias
Ele tenta. Esforçar-se para não se render completamente ao comando delas é exercício diário. Contudo, sabe do próprio atrevimento. Há dias em que se cobra por tamanho descaramento, porque ambicionar com tal afinco o que ambiciona é quase ignorá-las por completo. Acontece que é incapaz de evitar esse tempo breve de devaneio. Nem se trata de felicidade imaculada, inalterável. É apenas um assombro provocado por ela. Um arrepio na nuca. Uma taquicardia de menos de um minuto de duração. Um alento provisório.
É um desafio cotidiano conviver com elas. Não está em seus planos se retirar. Gostam de permanecer e se transformar: a carteira, as chaves, o emprego, o encontro, a hora do remédio. O amor de uma vida, a vergonha, o respeito. É difícil não pensar nelas. São as linhas de expressão, as expressões distorcidas para caber em declarações deturpadas. As guerras aquecidas pelo ego, pelo jogo de palavras. As evasivas recheadas de diretas de inflamar crueldades. As insanidades povoadas pela logística que enriquece uns e mantém outros debaixo dos escombros das tragédias.
Ele sabe que elas costumam começar feito pequenos ruídos, mas evoluem. Que gostam de enfeitar suas trajetórias com dores de ecoarem para sempre. Respeitar as perdas é custoso e muitas vezes o mantém preso em despedidas que não consegue finalizar.
Há dias em que a fuga é impossível. Perde-se nelas.
Imagem © Gerd Altmann por Pixabay
Comentários
Acho que sou uma escrava das obrigações e as vezes a fuga é se jogar nelas...
Como sempre, texto intenso e certeiro.
Gde bjo!!