DE NOVO, O AMOR >> Sergio Geia
Eu não notei o rasgão na calçada, olhava em frente, pro espelho de água que virou o asfalto na noite azulada, pra fila de carros, pra menina de cabelo rosa, só ouvi o ploct, como pedra atirada ao lago, ploct, e o meu sapato que resistira tão bem à chuva de meia hora, saiu da pequena fenda encharcado, pingando, puxando água até pelas canelas.
Merda, digo baixo, merda, merda, merda, mas não paro, continuo a andar, vou pensando nela, ainda que úmido, com um dos pés encharcado, com a barra da calça encharcada, não importa.
No Conjunto Nacional, na frente, na frente do Conjunto Nacional, entendeu?, é claro que entendi, eu te espero lá, Conjunto Nacional, tenho uma surpresa pra você, uma surpresa, entendeu?, você vai gostar, mas o que seria essa surpresa?, ela não quis adiantar, não falou, quando eu muito insisti ela disse não, agora não, tenho que desligar, meu chefe chegou, preciso desligar, tchau, amor, depois eu conto, tchau, beijo, e bateu o telefone.
Eu sou ansioso mas não era ansiedade, eu andava reparando, ela estava estranha. Será que escondia algo? Mas eu vou gostar, ela falou, você vai gostar, então, num passe de mágica, eu me acalmei. E pensei, como a amava, logo eu, tão fechado para o amor, mas como aquela menininha maluquinha tinha me arrebatado, nunca imaginei que a essa altura do campeonato eu fosse esbarrar em outro amor, igual àquela música da Marisa Monte, como é mesmo a música?, penso, tento me lembrar, a música na ponta da língua mas não vem, vem a raiva, como tenho raiva de não lembrar de algo que quero muito lembrar, mas a música não vem, não adianta, nem mesmo um pedaço dela, nem mesmo o nome, não vem, esqueço, concentro-me nos passos, na calçada, no Conjunto Nacional.
Haddock Lobo, quase esquina com a Luis Coelho, eu paro numa lanchonete. Tenho vontade de beber — uisquinho não seria nada mau — mas peço café; embaixo, restos de água fria atritando com a meia úmida dentro do meu sapato aumentam a sensação de frio. São sete e meia, ela marcou oito, sai às sete do trabalho, pega metrô, desce na Consolação, talvez a leve pra casa, penso em convidá-la pra dormir lá, ainda mais depois da surpresa, que eu vou gostar, vou gostar, e o coração dá saltos, pula quando a xícara de café aparece fumegante trazida pela mocinha.
O café me anima. Ao fundo, sentadas numa mesa, duas garotas conversam tomando coca-cola, jovenzinhas, há cadernos sobre a mesa, são estudantes. Uma delas chora, um choro copioso, sem disfarces, a outra a consola, fala coisas, acaricia-lhe os cabelos. Nem mesmo os óculos de lentes amarelas conseguem esconder aquela tristeza doída. Disfarço. Penso que a cena daria crônica. Peço um Rothmans, pago, saio.
Na Paulista, eu paro em frente à estação Consolação. Quinze pras oito, aguardo, quem sabe já cruzo com ela aqui mesmo. Vou até a Banca do Bruno, espio revistas na vitrina, puxo um cigarro. Cinco minutos, dez, nada. De longe tento avistar uma loirinha com corpo de modelo parada na frente do Conjunto Nacional.
Ela só aparece às oito e meia, puxa, meu chefe me segurou lá, quase não consigo chegar, pensei em mandar mensagem cancelando, mas não podia. Eu preciso conversar com você, preciso, e tem que ser hoje, de hoje não passa. Vamos a um café, um bar?, eu pergunto. Eu tô com fome, amor, que tal ali no Méqui?
Eu topo mas não toco no sanduíche, diferente dela que avança sobre o seu. A minha atenção está toda voltada para aquela boca pintada de vermelho, para os movimentos daquela boca pintada de vermelho, e principalmente, para os sons daquela boca pintada de vermelho. E os sons que saem daquela boca pintada de vermelho são bons, são agradáveis ao meu ouvido, entram como música, até me lembro de Marisa Monte, e como me enganara, o meu coração está mais vivo do que nunca.
Ao vê-la terminar o banquete, ao vê-la encerrar a fala, eu então dou um suspiro, depois um beijo naquela boca pintada de vermelho. E avanço sobre o meu sanduíche.
P.S.: Um pé na realidade, outro na ficção. Algumas das próximas crônicas (contos?), terão essa pegada. Espero que vocês gostem.
Comentários
"E avanço sobre o meu sanduíche."
Muito bom!
Que figura de linguagem deliciosa!
Então...
Se crônica "é uma fotografia", e hoje temos as "panorâmicas", a crônica se fez presente...panoramicamente rs
Texto delicioso!
"Ainda bem..." rs
João: Meu amigo, que delícia de comentário. "Ainda bem..." rsrs. Você matou.
Sandra: Sandra, querida, grato mesmo pelo comentário. São dois gêneros que me agradam muito.
Anônimo: Grato, amigo. Posso dizer que a surpresa o agradou, foi algo bom. Sobre o que seria essa surpresa, deixo pra você buscar a resposta em sua imaginação. Abraço! E obrigado por comentar.
Continue nessa pegada, que é maravilhosa.
Só achei um probleminha no seu conto: da pra me dizer o q essa moça queria mostrar??? Será que fiquei tão envolvida que perdi alguma coisa?
Prefiro não presumir nada, porque sempre vejo nas crônicas do Sérgio uma ausência de segundas intenções e uma honestidade maravilhosa.
Então vou esperar o próximo conto pra descobrir...
Continue nessa pegada.