SUA QUASE MORTE NUMA TARDE DE DEZEMBRO >> Sergio Geia
Foi no banco, três da tarde, calor de Saara. Já na frente do caixa eletrônico, quando colocou as mãos no bolso traseiro da bermuda de sarja, ele sentiu. Quer dizer, não sentiu. Opa, e um vento congelante vindo ele não sabe de onde, pois estava um calor de Saara, tomou-lhe a espinha.
O bolso de trás, sempre estufado, desta vez estava murcho, e inaugurava uma nova cena, estranha, inadequada. A sensação de que tudo corria bem, de que todas as coisas estavam em seus devidos lugares, o controle que temos sobre as coisas, ou pensamos que temos, ele mesmo, esse controle fake, em segundos, esvaiu-se.
Nossa, amigo, me desculpe, nem o notei, e a mente começa a vagar, fico com a cara no celular, isso que dá, perdão, e o esbarrão tolo de minutos antes começa a ganhar força. O coração batendo disparado, TUM, TUM, TUM, TUM, TUM, ele conseguia escutar e sentir os saltos, TUM, TUM, TUM, TUM, TUM, assim mesmo, quando você sente uma tragédia acontecendo. O rosto, molhado pelo calor, antes uma umidade comum, de uma hora pra outra ganhou outra espécie de umidade, muito mais densa e muito, muito perigosa, milhares de partículas se formando e criando um lago de partículas de suor, ele suava mais que corredor em maratona numa São Paulo verão de 40 graus.
Na primeira lanchonete que viu depois que saiu do banco, ele entrou. Pediu uma laranjada, preciso me acalmar, pensou, mas o coração acelerava mais, enquanto o pensamento viajava em cartões, débito, crédito, talão de cheques, documentos, a CNH, documento do carro — dinheiro mesmo tinha pouco —, toda a parafernália que o humano carrega na carteira para poder viver.
As mãos trêmulas não conseguiam levar o copo de laranjada dignamente até a boca. A lanchonete estava barulhenta, gente apinhada, um diz que diz, povo falando alto, gargalhadas, um som difuso que começou a deixá-lo ainda mais nervoso. Foi então que deu um estalo, sentiu até o clique, clique, não, não poderia beber a laranjada, pensou, e caiu na real, não tinha dinheiro pra pagar, o dinheiro havia sido roubado.
Achou por bem chamar a mocinha do balcão, explicar o acontecido, mas logo começou a ficar tonto, as vozes começaram a ficar distantes, sentiu uma forte dor de cabeça, fisgada no olho esquerdo, escureceu.
Acordou deitado numa cama, num quarto escuro de parede alvacenta. Ao seu lado, a cara do filho preocupado. O que aconteceu?, perguntou, e ouviu alguém que estava no quarto dizer que ele desmaiara e que o trouxeram para o hospital. Estamos analisando, a mesma voz dizia, a pressão teve um pico, estamos avaliando o coração.
Os filhos dizem que ele fez dúzias de exames, que fez cateterismo, que teve outro pico de pressão, que foi para a UTI, que saiu da UTI, que pegou COVID, que voltou para a UTI, que ficou entubado, que ficou mais de seis meses internado, que quase morreu, mas que por um milagre, sobreviveu.
Hoje não lembra direito o que exatamente se passou naquela tarde de calor de Saara na lanchonete, as imagens são nebulosas e sem sentido, como um sonho, mesmo porque, a carteira que imaginou roubada nem havia saído da gaveta de sua mesinha de cabeceira, deixada por um comum esquecimento de quem já não tem mais a boa memória de antes.
Comentários
Sensacional! Como te disse, essa sua nova fase está demais! Você, além de cronista das pequenas coisas, é um contista das pequenas coisas.
Gosto muito dessa escrita que imprime um tom acelerado ao texto. Parece que a gente fica com o personagem, com o coração disparado dele, dentro dos pensamentos dele, fazendo companhia na confusão mental que tomou conta dele naqueles minutos.
Muito bom mesmo!
Grande abraço!
Beleza de conto, a gente fica com sensação de que poderia ler dezenas de páginas nesse ritmo.