O OUTRO ELE >> Carla Dias
Voo é coisa na qual não pensa há muito. Quando pensava, rasante era de arrepiar viagens. Mas não se permite mais esse tipo de quando. Sua mente vive acomodada em fascínios comportados, daqueles extraídos das prateleiras dos fast-sonhos. Estudou para ser mais do que acabou se tornando: operador de telemiragem, produtor de acontecimentos, construtor de probabilidades, doutor em arrependimentos. Eram tantos talentos que serviam somente para ocupar espaço em currículos digitais descartados antes mesmo de se tornarem arquivos anexos abertos. Amor é coisa que não sente há nunca. Quando pensou que sentia, deitou-se com pessoas tantas e fartou-se de suas carnes, não sem antes pechinchar seus cachês. Colocou em prática as próprias habilidades de contador de tragédias, administrador de dúvidas, historiador de misérias, desenvolvedor de esquemas. Um dia, olhou-se no espelho d’água de uma poça após chuva de verão. Sentiu saudade daquele que acabara de conhecer. Sorriu, mas o outro não correspondeu.
Imagem © Rodrigo Scott
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