A MORTA >> Carla Dias
Está morta.
É preciso que vocês entendam: morta. Morta de morte que nem ressurreição aceitaria resolver. Não está dormindo. Beijo de príncipe não a traria de volta. Não está apenas apagada. A medicina não resolveria.
Morte morrida, zero batimento cardíaco.
Ao redor dela, que está ali, deitada no meio da sala, há uma variedade de lamentos mudos, mas que ecoam gritantes na cachola dos convidados. Os lamentos em nada têm a ver com a morta, mas sim com os próprios lamentadores. É que a morte do outro serve de roupa de gala à preocupação dos vivos, dos que ficam à mercê do ocorrido.
E se fosse eu?
Alguns choram sem lágrimas, estarrecidos com a ousadia da morta em partir justo em dia de festa. Alguém ganhou algo. Não importa se por merecimento, mas sim o fato de ter ganhado algo que vale um jantar envolvido por requintes. O evento seria uma comemoração, que não importa qual, não vamos nos ater aos detalhes, tampouco ao quem. Nesse momento, de nada nos valeria conhecimento de nome ou sobrenome, apesar de alguns dos presentes serem escolados no assunto. Importante mesmo é a fartura esparramada naquela mesa posta para a comemoração. Fartura intocada.
Onde já se viu morrer antes do jantar.
O grande problema provocado pela morta é outro. Ninguém sabe quem ela é. Deram uma geral nas bolsas, mas não encontraram a dela. Nenhum documento. Antes de chamarem a polícia, tentam decifrar quem diabos é essa mulher, a esparramada no meio da sala. Uns passam por ela, copos de bebida nas mãos, olhares desprezando a cena. A morte da mulher provoca nojo neles, como se o corpo, ainda quente, já estivesse no ponto alto da putrefação. Eles sentem o cheiro da morte e pedem aos serviçais para que borrifem o aromatizador no ambiente.
Onde já se viu recender à morte na casa dos outros?
Desafiando os olhares cúmplices em seu desprezo pela interrupção do jantar-festa, a governanta, que observava a tudo escondida no corredor que dava para a cozinha, adianta-se alguns passos, pede passagem, contrariando as ordens do patrão, que não queria que ela se misturasse aos convidados, porque contratara uma equipe mais... apresentável e jovem para o grande evento. Há quase meia hora, ele havia se enfiado em um dos quartos da casa com a amante número quatro e ainda não sabia da morta estirada no seu tapete persa legítimo.
O mistério foi resolvido feito folhetim pobre sobre pessoas rasas e expectativas vis. Resolvido por uma subalterna enfiada em um uniforme impecável que não lhe caía bem. Ao receberem a notícia, todos ficaram horrorizados, fizeram gestos coreografados para demonstrar tristeza que não sentiam.
A governanta ligou para a polícia. Uns e outros raptaram itens da mesa posta, que o desejo de os enfiar na boca e apreciar seus sabores se sobrepôs à tragédia. Mastigavam quitutes com nomes estrangeiros. A funcionária arrancou o patrão da sua festa particular. Ele veio para a sala, sendo seguido pela amante número quatro, meio descabelada.
Ajoelhou-se diante da morta. Segurou as mãos da morta entre as suas. Arrotou um silêncio constrangedor, de quem não sabe como reagir. O dono da casa confortou a si mesmo ao olhar para a amante número quatro e pedir a ela que trouxesse um lençol para cobrir o corpo de sua esposa.
Abalados com a necessidade de agradá-lo, os amigos o cercaram e reverberaram condolências. A amante número quatro escondeu um sorriso faceiro ao se enxergar no futuro como a senhora plena da casa e da vida de seu homem.
A governanta lamentou, silente, gritos enclausurados, que tenha sido a patroa a escolhida pela morte. Onde já se viu a morte errar a mão em uma sala cheia de escolhas mais justas?
Enquanto esperam a polícia, que parece ter problemas para chegar à casa visitada pela morte, todos se sentam à mesa. O jantar segue, assim como as conversas sobre trabalho e comentários sobre manchetes de jornal sensacionalista. A amante número quatro insiste para que o dono da casa coma algo, você precisa se alimentar, meu bem. Ele diz que não, mas dessa vez ela pede, carinhosamente. Ele não resiste ao charme dela e aceita o prato que ela faz para ele.
Quarenta e sete minutos depois, todos bêbados e falando alto, nem mesmo se lembram da morta no chão da sala. Um dos ébrios empunha sua taça de cristal: um brinde à...
Está morta.
Acreditem... não há o que se possa fazer a respeito. O que eles desconhecem, além do nome dela, a esposa do chefe deles, a anfitriã da noite, é que antes, muito antes dessa noite, ela já estava morta.
A governanta recebe a polícia, que encontra a festa em seu ápice.
Morreu do quê, minha senhora?
Ao que ela responde, a voz arrastada:
De falta de bom senso da morte.
- - - - - -
Esta crônica faz parte do Crônica de um ontem e foi publicada originalmente em 13 de junho de 2018.
- - - - - -
Imagem: Parmi les ombres longues © Toyen
Comentários
Gde bjo!