RETROSPECTIVA >> Sandra Modesto
Meu pai me chamou e disse que estava com câncer. Eu tinha que contribuir com o orçamento familiar. Nossa vida sofreria mudanças daquela hora em diante.
Fiquei meio assustada, mas, lá fui eu, ser “alguém” na vida. O trabalho era em uma empresa de telefonia.
Entrevista, uma prova de português e fui admitida.
Sempre gostei de sapatos. Usei o primeiro par de sapatos de salto alto aos 13 anos. Levei um tombo na Rua 22.
Com o meu primeiro salário, adivinha o que comprei? Um par de sapatos de grife.
O tempo avançou um pouquinho e minha vida como professora começou aos vinte e um anos. Primeira gravidez, escola de periferia, crianças em fase de alfabetização.
A escola era muito distante da minha casa. Não havia ônibus e eu ia e voltava a pé, debaixo de um sol escaldante, e a barriga crescendo, crescendo...
Com a gravidez no final, a diretora me trocou do turno vespertino para o noturno.
Mas o contrato na escola acabou. Voltei dois anos depois. Trabalhando com ensino fundamental dois e ensino médio.
Hoje consigo lembrar-me vários momentos. Um deles me entristeceu muito. Aconteceu numa cela de uma penitenciária quando exercia o magistério simultaneamente com a profissão de repórter de uma TV local. Fui cobrir uma reportagem na cadeia:
– Professora, professora, você lembra de mim?
– É ela! Ficou famosa hein, professora?
Cheguei mais perto. Recordei- me que tinham sido meus alunos. Senti uma mistura de revolta, desespero, impotência.
“Então eu fui professora deles e eles vieram parar aqui? Eu não servi pra nada”...
Não, não era isso. O problema era a desvalorização da Educação. Aqueles alunos na cadeia eram vítimas da sociedade desigual, falta de estrutura familiar. Uma série de questões graves.
Há três anos, tudo piorou no Brasil “Pátria amada Brasil”. Inferno!
Outubro de 2002...
Eu trabalhava em uma escola da periferia com minhas quatro turmas dos sétimos e oitavos anos, quando idealizei um projeto literário envolvendo o centenário de Carlos Drummond de Andrade. Sem recursos tecnológicos e falta de livros literários na biblioteca, reuni a turma e contei quem tinha sido Drummond, interpretei e cantei trechos de poesias. Para fechar a parte principal, ensaiamos um musical baseado no poema, “José”.
Tive a ideia de sugerir a pauta ao canal de TV. Repórter, cinegrafista, microfones, entrevistas. A matéria veiculou em rede regional, estadual, em um canal fechado de grande audiência. Momentos de aplausos e sorrisos da equipe pedagógica. Alunos com olhos brilhando.
Até hoje, reencontro muitos que se recordam de mim, a gente conversa, e eu fico sabendo que terminaram os estudos, alguns fizeram cursos universitários de música, teatro, pedagogia ou cursos técnicos. Estão aí, driblando dificuldades.
“AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO E AOS QUE NELES SE DESCOBREM E, ASSIM DESCOBRINDO- SE, COM ELES SOFREM, MAS, SOBRETUDO, COM ELES LUTAM.” Paulo Freire em PEDAGOGIA DO OPRIMIDO.
Comentários
Me identifiquei muito com a suas memórias, a gente quer que nossos alunos brilhem porque é um pouco do brilho do professor que está ali.
Eu fico triste porque entendo qdo vc fala dos obstáculos, que a gente vê e que a gente não vê, que mudam as trajetórias dessas crianças. Ou será que é a educação q deveria mudar essas rotas?
De qualquer forma, vc demonstrou q mesmo sem recursos, sempre há algum jeito de ajudar uma estrela a brilhar em algum céu!
Gde abço, Sandra