FABULINHA DE ANO NOVO DE MORAL DUVIDOSA >> Zoraya Cesar
Final de 2020, a pandemia covid19 ainda firme e forte. Que nem a vontade de Lúcio de fazer uma virada de ano memorável, que fosse diferente de tudo o que já fizera (nada) e trouxesse ventos de saúde, dinheiro, amor e, quem sabe, uma vacina. Se bem que, para Lúcio, bem podia ser um comprimidinho, ele detestava agulhas.
Sempre passara as viradas de ano dentro de casa, debaixo dos lençóis, sozinho. Por que, então, cismara de sair da toca justamente aquele ano em que a recomendação básica era a de ficar exatamente conforme ele ficara por toda a vida, ninguém sabe. Talvez 2020 tenha sido ainda mais marasmático que sua vida normal e ele se revoltou. Ou percebeu que sua existência era um eterno estado de exceção pandêmico. Conjecturas, no entanto. Psicologia de bar da esquina. Fechado, claro.
E o que pretendia fazer para colocar uma nova perspectiva em sua vida sensaborona?
Levaria oferendas para Iemanjá – embora não acreditasse em nada daquilo; beberia até cair – mesmo sendo fraco para álcool; daria em cima de uma mulher – historicamente, ou a mulher ‘chegava junto’ dele, ou nada feito; conversaria com um estranho – ha, ha, logo ele, que mal se comunicava com os próprios amigos. (Particularmente, creio que a decisão de Lúcio era inapropriada - não estávamos em tempo de socialização e, francamente, essas escolhas... Mas, quem sou eu?)
-----------------------------
Além de não acreditar, tinha até um certo receio; mexer com entidades e orixás era terreiro desconhecido, mas estava determinado a começar 2021 como um novo homem, e não como um velho mané. Não se livrara, no entanto, do avarento que existia nele: pegou o que tinha em casa: um pente desdentado, um espelho embaçado e a metade de um perfume que a faxineira deixara para trás, já meio oxidado. Afinal, pensou, o que vale é a intenção.
Lá foi ele, bermuda nova, cueca velha, blusa vistosa, havaianas de usar em casa e máscara de um obscuro time de futebol qualquer.
Havia poucas pessoas na praia. Menos ainda fazendo oferendas. No entanto, ele viu que havia flores. Flores! Como ele fora esquecer esse importante item? Não fosse por isso. Pegou algumas que estavam por ali, deixadas para trás, e jogou tudo no mar (lixo, na verdade, mas o que vale é a intenção, certo?). Não pediu; antes, exigiu um bom ano, já que ele estava ali pela primeira vez.
Não sei se Iemanjá é chegada a um senso de humor. Mas sei que antes mesmo da contagem regressiva que culminaria com a virada do ano sem fogos (aliás, graças!), a vida de Lúcio começou caranguejando.
-------------------------
Talvez fosse uma das pontas que faltavam no pente que Lúcio jogara ao mar, ou um caco de vidro, não sei, mas o fato é que ele furou o pé e teve de manquitolar até o calçadão. Nada grave, em princípio, e, antes que ele pudesse se abater, passa por ele, rebolando, sedutora e selvagem, uma mulher enorme, portentosa.
Se Lúcio soubesse das coisas, diria que ela parecia uma Klingon de máscara. Mas ele não sabia de nada. Quando se aproximou, disposto a convidá-la para dividir seu espumante na virada, levou um ‘ei’ forte e amedrontador no pé do ouvido. Um homenzinho bem menor que ele, magro, quase frágil, careca, olhava-o, ameaçador.
- Não tá vendo que a moça tá acompanhada não, manezão? Quer apanhar? - a voz saía um pouco abafada pela máscara, mas a mensagem chegou alta e clara. Lúcio não era de briga. Só queria paquerar, não viu que ela estava acompanhada. Era um mané mesmo, tinha de concordar com o zangado homenzinho. Escafedeu-se tão rápido quanto lhe permitia o pé dolorido e, agora, um pouco inchado.
Lúcio não desistiu de seu plano. Ia se transformar num homem descolado nessa virada de ano e pronto. À meia-noite começou a beber o espumante que trouxera, o mais barato que encontrara (embora pudesse comprar coisa decente). A bebida era tão ruim e alcoólica, que surpreendia que tomasse sem vomitar ou abrir um buraco no estômago ao primeiro gole.
E saiu a tomar aquele veneno, claudicando pelo calçadão, dizendo a si mesmo que era melhor estar sozinho, afinal, era época de isolamento social. Fazia, mentalmente, várias versões da fábula da raposa e as uvas para sua situação, no fundo no fundo amargurando-se como fazia todo ano.
Mas Iemanjá não esquecera dele. Oh, não…
--------------------------
Sentia-se cansado, bêbado e abandonado pela sorte quando viu alguém acenando para ele de um banco na orla. O cara estava animado e, aparentemente, calibrado com o mesmo material que Lúcio. Ficaram logo amigos de infância. Riram, choraram, e só não viram o dia amanhecer porque Lúcio não via mais nada.
Quando o índice de álcool em seu sangue desceu um pouco, percebeu-se sozinho em um bairro distante e o pé estava enorme e dolorido. Sentia um incômodo estranho na braço, mas nem se deu ao trabalho de olhar. Importante era manquejar até um pronto atendimento.
O médico fez-lhe um curativo e, a seu pedido, examinou também o braço.
- A noite foi boa, hein amigo? O coronavírus grassando por aí e o senhor se dando ao luxo de fazer uma tatuagem de qualquer jeito, sem proteção e ainda por cima bêbado. É por sua causa que os hospitais estão cheios.
Lúcio ficou atordoado. Tatuagem? Não se lembrava em absoluto de ter feito nada parecido. Se bem que não lembrava de ter feito nada. Olhou para o braço e gemeu. Gemeu muito. E gemeu mais ainda quando a antitetânica penetrou do-lo-ro-sa-men-te em seu músculo.
A dor lhe avivou a memória. O tal sujeito da praia era um tatuador peruano que lhe oferecera o trabalho em nome da recém-amizade. E Lúcio, sabe Iemanjá porque, aceitara. Pedira uma flor, igual à que roubara para colocar em sua oferenda, mas saíra um desenho horrível, mistura de deusmelivre com cruzcredo.
Voltou pra casa macambúzio. Pior virada de ano de sua vida! Ele, que detestava agulhas, tivera uma overdose delas numa única noite. Quase apanhara no meio da rua e o espumante vagabundo estava cobrando seu preço em enxaqueca, azia e revoltas intestinais. Ainda bem que tudo terminara, suspirou, ao deitar-se em sua cama macia e confortável, dolorido, infeliz e sem saber como se livrar da maldita tatuagem.
O interfone toca. O porteiro diz que um rapaz peruano, de nome estranho, procurava pelo amigo Lúcio, que dera endereço e o convidara para ficar em sua casa...
------------------------
Moral da fabulinha:
Você dá, a vida devolve: portanto, não seja muquirana!
Enquanto durar a pandemia, não saia por aí audaciosamente indo aonde nunca foi para fazer o que nunca fez.
PelAmor! Se um dia fizer uma tatuagem, escolha um profissional. Sóbrio.
E, por fim (essa é uma fábula com várias leituras), quem não tem mandinga não carrega patuá…
Tenha sempre em mente que não, nem sempre a intenção é o que vale.
Ah, sério, última mesmo: feliz ano novo para todos.
Outras histórias de ano novo
Comentários
um adendo, quando não mata...judia né? rs
bom demais annnnddddd funny
8 de janeiro de 2021 11:54
Promete ser bem ruim, mas com chance de alguma redenção até o seu fim.
Enquanto isso não chega, ao menos ele começou bem, com um texto zorayacesarmente engraçado.
Mas meu caso é grave.
Sempre que leio os textos da Zoraya, acho que ela está me zoando, tripudiando de minhas inúmeras idiossincrasias. Eu me vejo em cada personagem dela.
Será que eu vou morrer na próxima publicação????
Ninguém morreu nesse conto, mas o cara ficou bem estropiado e ainda arrumou, ao que parece, um "carma peruano" para 2021! Quem mandou fazer graça com quem nao deve!
Melhor assim, começar o ano com um texto divertido, já que o que se foi não teve nenhuma graça... Vou começar a campanha: mais humor, menos assassinos em série kkk... Mas não acabe com eles, porque muitas vezes são quase tão catárticos quanto uma gargalhada hehehe
lord white - hahaha vc descobriu um de meus segredos, qdo nao mato... o seu 'aannnnnd funny' foi ótimo kkkk
Márcio - ja´tentei explicar, vc nao me acredita. Claro q não vou matá-lo. Onde mais iria pegar minhas ideias e... ups. Sei q é elogio seu, mas fiquei curiosa em saber o q vc quer dizer com 'um texto zorayacesarmente engraçado" hehehe
Ana - quem sabe o novo amigo peruano não expande os horizontes de Lúcio, hein?
AmantidAnônima - haha q bom q gostou! Menina, sim, Lúcio não deveria ter saído da cama, mas, se a gente pensar bem, ele fez tudo o q quis, né? fez a oferenda, deu em cima de mulher, conversou com estranho... hahaha, sei não, acho q nao era mesmo o dia dele
Nádia - e não é? a lei do eterno retorno tá aí.
Anônimo - gostei da ideia. 'carma peruano.' vou criar algo com isso. vai ser divertido.
Érica - fazer rir, intrigar, divertir ou meter medo é o sonho de todo escritor. Valeu! Ah-ha, to dizendo q vc já foi convertida às minhas catarses mortais...
Dom Albir - sinta pena do Lúcio não, ele fez por merecer. Onde já se viu oferecer restos, comprar espumante ruim e ainda por cima vagar por aí em plena pandemia? Ele até que se deu bem! E não se preocupe, tenho certeza q vc nao cometeria os erros dele. Bem, pelo menos nao os dele... (risadas de filme de terror ao fundo)
A todos, muito obrigada pela leitura e comentários. De verdade. E feliz ano novo, sem muquiranices e sem estranhos amigos peruanos.
Só você pra me fazer rir na maior qualidade do riso. Sério, adoro como você pontua ironias e de como os seus personagens pagam a conta. Iemanjá agradece.
Paulo, faça isso, o coitado tá precisado de amigos que não o tatuador peruano kkkk, obrigada pelo comentário!