CORALIE >> Alfonsina Salomão
Agarrou-se a seus pequenos rituais. Arrumar a cama. Esta era a parte mais penosa. Detestava cama desfeita, mas às vezes chegava no meio da tarde sem ter juntado coragem para esticar os lençóis. E, no entanto, era tão fácil. Essa resistência não tinha explicação. Por isso inventara uma nova regra para si mesma: só poderia passar pela porta do quarto depois que o edredom estivesse estendido na cama e cada um dos quatro travesseiros reposicionado no seu devido lugar. Apenas então se permitia ir ao banheiro, onde lavava e passava creme no rosto. Outro ritual que, caso descuidasse, ficava negligenciado até o final do dia.
Dirigia-se então para a cozinha e colocava a água para ferver. Se tivesse filhos minha vida faria mais sentido, suspirava. As amigas reclamavam das crias, declaravam não ter tempo para nada, eles as estavam pondo loucas, histéricas, extenuadas. Coralie fingia achar graça. Certa vez agiu diferente. Por puro desdém, fez cara de nojo e disse à uma amiga que pelejava para dar comida ao menino, que por sua vez disparava jatos de papinha alaranjada cozinha afora: “Isso é que é ser mãe?”. Mal acabara de pronunciar estas palavras, Coralie se sentiu mal. Quis desdizer, mas não tinha jeito. Ao menos desta vez coube à amiga fingir achar graça.
Anos de tratamento para engravidar lhe trouxeram alguns quilos à mais e um casamento à menos. Aquele idiota a largou depois do terceiro ou quarto ano de hormônios, não se lembra direito. Soubera por amigos em comum que estava morando com uma mulher que tinha o mesmo nome que ela, Coralie. Não duvidava que sua dublê já estivesse prenha. Aliás, tinha certeza de que este era o caso, apenas não lhe disseram nada para poupá-la. Ele estava louco para ser pai. Chegara até a propor uma adoção, poderiam viajar para um desses países pobres, tornarem-se pais e de quebra salvar um bebê do destino miserável que o aguardava. Mas para Coralie isto estava fora de questão. Seu filho teria que ser sangue do seu sangue, forjado nas suas entranhas e expelido pelo seu sexo. Não aceitaria nada diferente.
A chaleira apitou. Coralie despejou a água fervente na xícara e ficou observando a mancha marrom deixar o saquinho, macular o líquido transparente. Sacudiu o saquinho de chá, jogou-o na lixeira e foi até a janela. Geara durante a madrugada, a grama esbranquiçada refletia os raios de sol tímidos. Mais um dia começava. Mais um ano. Não tenho filhos, não tenho marido e uma pandemia se atarda mundo afora, diminuindo ainda mais minhas chances de encontrar alguém e recomeçar, ruminou. Tão logo se arrependeu dos próprios pensamentos. Estou me tornando uma dessas mulheres amargas... “Não estamos ao abrigo de uma catástrofe”, lera ontem no jornal. Não dava para planejar. Mas não jogaria a toalha. Continuaria a se levantar, a arrumar a cama, a lavar e passar creme no rosto, todos os dias. Porque, como dizia sua mãe, tudo passa. Até a vida.
Comentários
Ótima história!